NAS CALADAS NOITES DE INVERNO
Óleo de Columbano Bordalo Pinheiro, 1928
Nas caladas noites de Inverno, quando despego o olhar dos papéis, encontro sempre os teus olhos que me envolvem de ternura. Isto é quase nada – e revolve o mundo. É saudade, é a vida que passa e a morte que se aproxima, enquanto o tronco arde no lume, o pinheiro estala ou o carvalho amorroa.
De fora vem o hálito da floresta e das águas. Mais silêncio... Surpreendo-te então a repetir o meu pensamento, ou é o teu que me acode ao mesmo tempo. Não fales! Outra figura transparece atrás da tua figura. Nesse momento até o lume parece encantado e ficas tão linda que antevejo a vida misteriosa que me fascina e deslumbra. Isto só dura um segundo. Mas basta às vezes que sorrias e é a tua alma que sorri; basta às vezes que não fales e é a tua alma que me fala. Nesse momento somos um ser: eu sou tu; tu és eu; tu sorris, eu sorrio. Então cai sobre nós o silêncio – e eu descubro o que só nos é dado ver depois da morte, a amplidão das almas, seu poder magnético e, num deslumbramento, ao lado da existência pueril, a imensidade do universo e o infinito que nos rodeia e de que perdemos a sensação pelo hábito.
Raúl Brandão
Raúl Brandão e a sua mulher, Maria Angelina, com quem manteve uma grande cumplicidade criativa
In O SILÊNCIO E O LUME, Dezembro de 1924