NA PRAIA DOS CÃES - 6
NA PRAIA DOS CÃES – 6
Aqui, na aldeia desta praia, tudo começou nas primeiras décadas do séc. XX com a construção dumas cabanas de caniço e telhados feitos com ervas das dunas entrelaçadas com mais canas. Os homens andavam ao mar que aqui é benigno e as mulheres iam a pé pelos 14 quilómetros da praia vender o peixe na Costa de Caparica. Na volta, traziam o que por aqui faltava. Houve quem nascesse algures no caminho mas todas faziam por dar à luz na Costa onde sempre havia algum apoio familiar. Hospital? Faltaria quase um século para que aparecesse o primeiro na região. Escola? Faltaria uma geração para que a aldeia visse uma professora.
Analfabetismo absoluto nesse grupo de fundadores. A primeira grande melhoria nas condições de vida foi a substituição do caniço nas cabanas pelo pau a pique com a madeira que «sobrava» da “Mata dos Medos”, lá por cima da arriba, a fóssil. E foi nesta escarpa que mãos e pés de gentes e mulas talharam a rampa que hoje está um primor de asfalto. E as mulheres deixaram de ir a voltar a pé à Costa porque passaram a usar carroças. E lá iam fazendo o seu comércio pela Charneca, pelos Capuchos e outros lugares que hoje parecem cidades…
Esses pioneiros «consumiram» duas gerações mas a dos que nasceram das mulheres que corriam pela praia já deixaram os filhos «ir à escola» da professora que alguém para cá mandou. Quem? Hoje já ninguém sabe mas eu adivinho que deve ter sido o Almirante Tenreiro que era quem mandava nas pescas e suas gentes. A escola era uma cabana de pau a pique e a professora tinha como missão principal ensinar a ler, a escrever e a contar todos aqueles que quisessem aprender, crianças ou adultos. Só se apresentaram crianças pelo que ainda foi possível ensinar a tabuada e a fazer algumas contas – as de dividir… não mereceram a simpatia generalizada. A conjugação dos verbos também não foi possível ensinar. Mas, convenhamos, a escola foi um grande progresso e a nova geração ficou alfabetizada. Já não há memória de quando a professora deixou de aparecer e a escola acabou na aldeia.
Já os cravos da revolução tinham murchado quando a aldeia viu a luz eléctrica da rede geral e então, sim, iluminaram-se os espíritos com acesso regular à rádio, à televisão e, enfim, ao mundo. Desta geração iluminada, a maioria frequentou o ensino secundário com mais ou menos sucesso e há dois ou três casos de licenciaturas universitárias.
Mas, de um modo geral, o vocabulário é limitado, os verbos pouco mais têm do que o Presente do Indicativo, os centros de interesse são, de um modo geral, a pesca, o futebol e a vida local. Sintaxe? Sim, a de ouvido. Linguagem simples, rarefação de raciocínios especulativo-conclusivos.
E a pergunta é: - Sobreviverá a aldeia se a sua população se promover cultural e profissionalmente?
A minha resposta é: - A aldeia sobreviverá, certamente, mas com um modelo económico e social completamente diferente do actual: a pesca passará a ser folclore para entreter turistas à semelhança do que, tendencialmente, acontecerá em todo o litoral português. O peixe virá das aquaculturas instaladas pelas grandes redes comerciais. Tudo, porque o método de formação dos preços na primeira venda é um primor de absurdo com o risco todo concentrado na oferta e o lucro todo do lado da procura. RIP pescas portuguesas.