NA MORTE DO «BOM-SENSO»
Enviaram-me há dias um vídeo em que um cavalheiro formal e pesaroso anunciava a morte de um seu amigo, o «bom-senso». Sem paciência para figuras de retórica nem para falsos rasgos humorísticos, desliguei.
Mas fiquei a pensar naquilo e quando procurei o vídeo, já não o encontrei. Resta a solução de pensar por mim próprio.
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Na gíria, há uma certa tendência para associar - se não mesmo para confundir - «bom-senso», «senso-comum» e «bem comum» mas desde já faço notar que o «bom» pode não ser «comum» e, vice-versa, o «comum» pode não ser «bom».
Comecemos pelo Dicionário Priberam:
- Bom-senso – Equilíbrio nas decisões ou nos julgamentos em cada situação que se apresenta;
- Senso comum –Conjunto de opiniões ou ideias que são geralmente aceites numa época e num local determinados.
Bastou, pois, o recurso ao dicionário para pormos o «senso-comum» fora de jogo – honi soit qui mal y pense – no que respeita à questão do vídeo.
Assim sendo, ficam em apreciação o «bom-senso» e o «bem comum», sempre na perspectiva social, substantiva, de «bom» (daí, o hífen) e de «bem», expressões não adjectivantes.
Estas expressões estão directamente vinculadas ao conceito positivo de «bem social», substantivo, por contraste com «mal social». Mais especificamente, a boa conduta social e à sua oposta, o mau comportamento.
Portanto, o que é a boa atitude social que tem por génese o bom senso?
É aquela que é conforme à harmonia social e se configura pelo altruísmo, pela humildade e pelo sentido do dever[i].
Mas se o pacifismo implícito na harmonia (a da concertação social) for posta em causa pelas doutrinas que têm como base de actuação a luta de classes, o que é bom para uns é mau para os outros e vice-versa. Ou seja, o «bom» transforma-se de substantivo em adjectivo e as características acima referidas transformam-se em egoísmo (vs. altruísmo), em arrogância (vs. humildade) e em irresponsabilidade (vs. sentido do dever), pedras estas que cada facção arremessa à outra.
Isto significa que a cada projecto político corresponde um conceito de bem comum e que a cada um destes corresponde um quadro específico de «bom-senso».
E em democracia pluripartidária é assim mesmo: periodicamente, o modelo de «bem comum» é referendado e ganha aquele a que corresponde a maioria de um certo «bom senso».
Ou seja, o «bom-senso» não morreu, ele apenas é diferente (eventualmente, muito diferente) do da opção do cavalheiro formal e pesaroso do vídeo que não vi na íntegra. Mas, adivinhando, sou capaz de lhe dar alguma da minha simpatia.
Maio de 2020
Henrique Salles da Fonseca
[i] - O que é que eu posso fazer por ti sem o prejudicar a ele, esse terceiro que até pode não estar identificado?