MORDOMIAS DO FUZILEIRO
O Sr. Joaquim falava sem interrupção. Carpinteiro de profissão, natural de Montargil, vigoroso, agora na força dos seus sessenta anos, exalando um cheiro acre intenso onde se mistura o suor, o alho e o grude, foi fuzileiro naval e pertenceu à 21ª Companhia integrada na operação "Nó Górdio", levada a cabo no Planalto dos Macondes em 1972, sob o comando de Kaúlza de Arriaga. O Sr. Joaquim ia dizendo: - "Eu não me queixo de ter feito a guerra. Gostava de andar lá pelo mato, ouvir aqueles sons da floresta como também apreciava o tratamento que nos davam: - Que ricos bifes e eu que nunca tinha comido um bife. Verdade que o Kaúlza nunca nos convenceu. Vinha passar-nos revista com o seu pingalim de castão de prata e logo se notava que o homem não era dali. Andava às apalpadelas. Com o "Nó Górdio " gastou rios de dinheiro e sacrificou muitos homens. Máquinas por todo o lado, desmatou centenas de quilómetros de floresta, mas nunca conseguiu selar a fronteira. Os Macondes são bravos, artistas e engenhosos; arranjavam sempre maneira passar de um lado para o outro e emboscar as nossas patrulhas. Nós apanhávamos os panfletos que Kaúlza mandava espalhar do ar: - "a cor não conta" e outras patacoadas. Nós ainda os líamos mas os nativos não sabiam ler e poucos falavam a nossa língua. Os que foram para a Guiné dizem que o Spínola era mais desenrascado mas também não sabia tratar o inimigo. Acreditou que tinha as aldeias com ele. Foi um logro. O sangue pesa mais do que a água. Logo que essa gente pôde, virou-se contra e lixou-lhe a tropa. Isto já se sabe: na guerra contra a guerrilha, ganha a guerrilha. Ganha quem tem o povo por ele. Veja lá os americanos no Vietname. Mas eu não me queixo de ter lá andado, não. Ao menos, tenho o que contar".
Dei-lhe boleia para o ajudar a transportar a ferramenta pesada do seu ofício. "Sabe, dizia ele, já não tenho a energia que tinha. Dantes, eu transportava, escada acima e de uma só vez, dois sacos de cimento com cinquenta quilos cada. Agora os sacos de cimento pesam 35 kilos e eu só consigo transportar um de cada vez. Mas não me queixo, não. Subo as escadas mais vezes e pronto".
Ao chegarmos ao seu "caixa-aberta", despedimo-nos mas a sua presença permaneceu assinalada pelo cheiro intenso que deixou no carro. E lá continua mas eu também não me queixo. Serve para me lembrar o Sr. Joaquim, oriundo de Montargil, a primeira pessoa que conheci que tem saudades da guerra na selva africana. "Que belos bifes!"
Luís Soares de Oliveira