MOÇAMBIQUE REVISITADO – 9
Diz quem sabe que Lourenço Marques tinha cerca de 750 mil residentes, que o efeito «guerra civil» fez com que as populações rurais afluíssem para junto da cidade em busca de segurança e que Maputo passou a ter 2 ou mais milhões. Não os contei quando ainda eram laurentinos e muito menos quando passaram a ser maputanos. E agora não fui verificar nesse que sabe tudo, o Google. O que eu sei: que «no tempo da outra senhora» se podia confiar nas estatísticas portuguesas. O que eu não sei: se «com esta senhora» se pode confiar nas estatísticas. Mas vi que há muito mais gente nas ruas e que antigos descampados estão ocupados com o que nós chamávamos «caniço».
Pareceu-me que a cidade de cimento funcionava relativamente bem e quase arrisco a dizer que tão bem como connosco; relativamente à envolvente informal, sendo muito maior do que no nosso tempo, admito que os problemas tenham crescido na razão directa – e no tempo português, eu achava uma vergonha deixarmos aquele desleixo municipal coexistir com uma cidade de sonho. Mas havia quem encolhesse os ombros e dissesse que se em Lisboa havia bairros de lata, não havia razão para que em Lourenço Marques não houvesse caniços. Lógica absurda, sempre o pensei e sempre o disse.
Ao sairmos do hotel, decidimos dar uma volta a pé pela avenida para vermos de perto o prédio ali mesmo ao lado onde morei. Já não é de habitação, é a sede duma rádio. Pulus ad margaritam, penso eu. Uma rádio instala-se em qualquer lugar, não é necessário ocupar um edifício emblemático e que nasceu para ser de grande luxo.
Nessa que foi a «Avenida António Enes» e agora tem o nome de um comunista estrangeiro, fomos abordados por vendedores ambulantes de artesanato que não incomodaram nem mais nem menos do que qualquer outro vendedor ambulante em qualquer parte do mundo com excepção da Índia onde batem todos os recordes de melguice. Do lado oposto da avenida, em frente da minha antiga casa, tinha havido uma barbearia e uma casa de chá, a «Canoa». Disse bem, tinha havido. Mas não esqueçamos que, entretanto, se tinham passado 32 anos. Nada mais natural que, mesmo sem tsunamis políticos nem guerras civis, as casas comerciais possam não perdurar tantos anos. Portanto, não estranhei que ambos os ditos estabelecimentos já não existissem. O que estranhei foi um deles estar vazio e o outro ser uma loja de bugigangas iguais às vendidas ali mesmo em frente na rua pelos tais ambulantes só que sem a componente fiscal a que a loja não poderia (não mesmo?) fugir. Claro está que enquanto existir o «Clube de Paris» a que pertencem os países doadores, o aprimoramento da cobrança de impostos é tema não premente. E o povo empreendedor (lojista ou ambulante) é muito mais feliz na economia paralela do que na tributada.
Seguimos em frente e começámos a ver hotéis novos e centros comerciais… tudo a cheirar a novo. E fomos até à Ponta Vermelha onde continua a ser a residência do «Chefe Máximo». A diferença é que no antigamente o acesso àquelas ruas era tema pacífico e quando lá espreitei foi-me dito que se tratava de área reservada. Compreendi a medida de segurança e fiz meia volta. E mesmo que não tivesse compreendido, teria feito meia volta na mesma. Seguimos pelas traseiras do palácio presidencial e vimos que aquele simpático bairro de ruas sombreadas por acácias rubras e casas unifamiliares estava já em franca recuperação. Nitidamente, casas devolvidas a proprietários de regresso entretanto vendidas a terceiros ou não. Não fui investigar.
Mais adiante, o Museu da História Natural onde eu nunca tinha entrado. Estava na altura de o fazer: era agora ou nunca pois numa próxima visita a Moçambique muitas outras coisas haveria para conhecer ou rever. Fiquei com a sensação de que tudo se encontrava exactamente como nós tínhamos deixado aquelas colecçóes em exposição. Mas aqui apertou a curiosidade e perguntei quem fazia a manutenção de tudo aquilo. A resposta foi um pouco diferente daquela por que eu esperava: - Somos nós, os funcionários do Museu, depois de cá terem vindo os técnicos portugueses ensinar-nos como se deve proceder.
No final da visita, era hora de almoçarmos e fui à procura do Piri-Piri. E lá estava ele a servir o frango assado com molho de piri-píri e batatas fritas. Mas fomos a outro restaurante – que eu não conhecia – ali próximo, na antiga António Enes tornejando para a pequena rua que dá acesso ao miradouro que foi dos Duques de Connaught, porque servia marisco como não se come noutras paragens. E como não somos nada gulosos (?) deixámos na manga a ida ao Grego da Costa do Sol para nos lambuzarmos com os caranguejos. Sim, fomos e encontrei lá o meu velho amigo Tó Zé Roxo Leão. Mas regressando ao primeiro dia, seguiu-se alugar um carro para o resto da visita a Maputo e arredores até que os caminhos nos levassem para longe.
Tratada a papelada, fomos um pouco até à piscina dar umas braçadas, descemos ao quarto e preparámo-nos para ir jantar ao Sheik onde tinha mandado reservar mesa.
O Sheik, cuja filial em Lisboa foi inaugurada no dia 25 de Abril de 1974, estava de cara lavada mas praticamente igual ao que era 32 anos antes quando eu lá almoçava e jantava quase todos os dias. Não me admirei por não ser reconhecido mas voltei a experimentar o bife tártaro que continuava a figurar na lista que era, no mínimo, muito parecida com a primitiva. E se a lista não era mesmo muito parecida, a minha imaginação fê-la assim parecer. Acompanhámos o jantar com um tinto Periquita que exteriormente era igual ao último que eu lá bebera, com uma diferença: este não sabia a azeite como o de 32 anos antes.
Bem jantados, cansados da passeata do dia e da noite anterior dormida em avião, regressámos a pé ao hotel numa breve caminhada mais tranquila do que se fosse hoje em Lisboa.
Boa noite, amanhã há mais.
Agosto de 2019
Henrique Salles da Fonseca