MOÇAMBIQUE
SENA
FORTE DE S. MARÇAL
A data da edificação do forte de S. Marçal de Sena é desconhecida.
Alguns autores afirmam que o forte existia já ao tempo da expedição de Francisco Barreto. Porém, o jesuíta Monclaros, que acompanhava a expedição, apresenta-nos, na sua "Relação" da viagem, Sena como "povoação pequena de casas de palha ao longo do rio metida entre um mato". Não deixaria, certamente, de mencionar o forte, se já existisse. Esclarece, ainda, que a expedição conduzia, em carros, pedra para se edificar a fortaleza.
De positivo, sabe-se que Francisco Barreto levantou um forte de taipa, assim que chegou àquela povoação, "oito dias ante Natal".
Regressado em Outubro de 1572 das operações contra o Mongás, "determinou refazer o forte que tinha deixado de madeira de taipa qual lhe ficava por aposento e tinha dentro uma ermida de S. Marçal e a casa da feitoria". Monclaros, ao concluir a "Relação", diz:
"... e nos viemos a Moçambique ... deixando bem provido o forte de S. Marçal, assim de capitão e soldados, como das mais coisas necessárias".
Vasco Fernandes Homem, em 1576", só diz : ... neste forte, onde eu agora estou, que Francisco Barreto fez para guarda dele ...".
Outra notícia do forte dá Fr. João dos Santos. Em 1585, naufragou na costa de Quelimane a nau "Santiago". Manuel Godinho Cardoso escreveu a relação do naufrágio e descreve a povoação :
"Sena é povoação de portugueses; nas terras de Inhamioy, tem um forte que se chama S. Marçal, com capitão, soldados e artilharia, e ainda que pequeno e de pouco presídio, basta com tudo para ter enfreados e sujeitos os negros, os quais cercando-o uma vez, desistindo da empresa se retiraram com muito dano seu".
Fr. João dos Santos em 1590 e deu a primeira notícia do forte de pedra:
"Sena é uma povoação situada junto do rio Zambeze, da parte do Sul nas terras da cidade Inhamioy, sujeita ao Manamotapa. N'esta povoação está um forte de pedra e cal, guarnecido de algumas peças de artilharia grossa e meuda, mui bastante para sua defensão, no qual mora o capitão posto da mão do capitão de Moçambique. Dentro neste forte está a egreja e a feitoria ...".
Assim, a data da construção do forte pode situar-se entre 1572 a 1590.
Em começos de 1618, o forte estava arruinado. Devia está-lo desde longo tempo pois a sua ruína era já conhecida em Portugal em Março daquele ano, data do regimento dado a Nuno Álvares Pereira, promovido na capitania de Moçambique. O regimento mandava :
"Depois de entrardes nos Rios, hireis visitando e provendo as aprovações e fortes que nellas ha, e porque sou informado que havendo em Sena fortes de pedra e cal em sitio conveniente, e cô artilharia os portugueses casados que ali residam, o deixarão arruinar, e da pedra, que se hauia trazido de longe, fizeram outras obras em suas casas, e não ha quem dê razão da artelharia, e que convem reevdificar-se para segurança da fazenda que estiver na feitoria, e da mesma povoação".
A artilharia, segundo Pedro Barreto de Rezende, numerava oito falcões e estava arrecadada na feitoria, donde se conclui que em 1635 o forte não fora ainda reconstruído. Também não estava em 1667; Pe. Manuel Barreto de Goa, aos 11 de Dezembro desse ano, diz :
"Commumente se chama o forte e povoação de São Marçal; mas a povoação não tem forte algum, mais q as taipas das cazas, de que todas estão cercadas em roda com seus quintais: e fica cada caza um forte tão bom como se fosse chumbo, principalmente se os pontos da taipa se abrirem em seteiras, e descortinarem com revevzes; no que se tem pouco cuidado, por que nunca Sena foi envestida de enimigo".
Fr. António da Conceição, em 1696, descreve Sena como povoação "de trinta casas pouco mais ou menos de moradores graves, além de outros somenos". Nenhuma referência ao forte. No entanto, a povoação poderia "... fortificar-se belissimamente, porque de huma parte lhe fica o Rio e da outra huma serreta que parece poz Deos ali para um castello".
O forte foi, finalmente, reconstruído em 1704. A pedra sobre a porta de armas (única parte que resta do forte) diz:
"Sendo capitão geral desta conquista D. João Fernandes de Almeida mandou fazer esta fortaleza na era de 1704 contribuindo para a sua despesa com muita parte da sua fazenda".
No regimento dado, em Goa, 1709 a António Simões Leitão, nomeado "tenente general de Moçambique e Rios e Governador deles", corfirma-se estar reconstruído o forte:
"Chegando a Senna vereis o estado em que se acha a Fortaleza que novamente se faça naquela Pouoação, e tendo já alguã danificação como tenho por notícia a mandareis reparar e aperfeiçoar os quartéis que nella se começarão para os soldados, e as mais offecinas competentes para o seu alojamento, e detença; e se he conveninete amurar se a Pouoação, e utilidade que se segue aos moradores de ser fortificada, e se poderá sem bem defendida com a gente que nella se acha.
Mandareis passar mostra a companhia que assiste da guarnição na dita Pouoação e acabarão os quartéis que para ela se começarão na Fortaleza que de novo se fabricou ...".
É este segundo forte de Sena que D. Francisco de Melo e Castro, capitão general de Moçambique, descreve no seu relatório datado de 10 de Agosto de 1750:
"É a povoação de Sena a capital de toda a conquista aonde reside o General dela... A sua única defesa é o forte de S. Marçal, com quatro baluartes da figura e construção que se refere na explicação da sua planta, com catorze peças de artilharia dos calibres de oito, seis, quatro e três“.
Em 1758, o capitão general Pedro de Saldanha de Albuquerque, em carta a El-Rei, datada de 30 de Dezembro, dizia:
"A Povoação de Senna tem huma Fortaleza feita de Adobes de barro, coberta de palha, que hé bastante para o Inimigo do Paiz; tem de guarnição cincoenta Praças, das quaes dez se destacão para Manica. O General me pede agora alguns Officiaes Carpinteiros, para fazer os reparos que faltão para a Artilharia della, que na seguinte monção os hei-de enviar, e ainda que o mesmo General me pede também setenta arrobas de ferro, na referida monção lhe mandarei parte desta quantidade, por q os Armazéns tem só pouco, q agora mandey comprar nesta Galeria de Bahia".
Jerónimo José Nogueira de Andrade dá a seguinte notícia do forte:
"Tem esta Villa [de Sena] hum Comandante e hum Feitor, e hum quadrado formado de terra e faxinas, ao qual reducto chamão a Fortaleza de S. Marçal de Senna, cuja guarnição consta de 38 praças a saber: um Sargento Mor, e hum Ajudante da Praça, hum Capitão, hum Tenente, hum Alferes, hum Sargento, hum Furriel dous Cabos hum Tambor e 28 soldados".
Em 1884, o l.° tenente da armada José Maria, apresentou ao governador geral um relatório da viagem que fizera pela Zambézia. Sobre o forte de S. Marçal:
"Não obstante [sofrer de febres] visitei a praça de S. Marçal da qual só posso dizer que está a cair. A cortina que deita para o lado do rio não existe; está substituída por paus a pique. No barracão a que chamam quartel chove por toda a parte, e os outros armazéns estão a desmoronar-se. A casa do Commandante da praça só tem as paredes.
Ha ainda uma porção importante de material de guerra da ultima expedição á Zambézia, mas uma parte está avariado principalmente devido ao desleixo com que tem sido tratado. A praça é um pântano; no tempo das chuvas junta-se a agua no meio da parada e ali espera que o sol a faça evaporar e o terreno a absorva. Ao actual Commandante militar incumbi a terraplanagem immediata da parada, o fabrico de 6 reparos sendo 4 de praça e 2 de flexa para montar a boa artellaria de 0,8 m raiada qua ali ha. Ordenei-lhe que removesse todo o material para uma casa fora da praça onde não chove, que o inventariasse e beneficiasse remetendo-me uma copia do inventario e nota do que está inútil. O destacamento tinha 10 soldados, que pediam esmola pela povoação porque há 8 meses não recebem pret, não obstante sair todos os meses do cofre de Delegação o pret na totalidade do effectivo do batalhão. Á vista de tal miséria, acceitei o offerecimento que me fez o Capitão Paiva d’Andrada de dinheiro para fazer um abono aos soldados e mandei pagar 1.200 reis por cada mez em atraso. Tornando a chamar a attenção de V. Exa. sobre a praça de S. Marçal direi que julgo, de summa importância o seu concerto porque tem bastante capacidade, está bem collocado e seguramente o que se poderá dispender com o seu arranjo, que ha-de ser muito, é muito menos do que o valor da porta que está de pé. Encarregou-se voluntariamente o commandante militar de Sena de lhe levantar a planta e remetter-m'a".
Em Julho de 1896, o governador do distrito da Zambézia ordenou ao comandante da Praça, que procedesse "a um imediato concerto na face da praça que é feita em aringa” isto é, em estacaria. O comandante da Praça respondia, em 25 de Julho: "Afim de dar cumprimento ao telegrama n. 317 de 22 do corrente, que em nome de V. Exa. me dirigio o chefe da repartição militar, sou a dizer o seguinte :
A Praça de S. Marçal é um quadrilátero que tem de perymetro aproximadamente 700 metros e nos ângulos quatro baluartes: em pentágono, defendidos por 10 boccas de fogo de diferentes calibres. Como V. Ex.a vê é uma praça enorme e que só pode ser deffendida com grande numero de soldados. Ainda assim poder-se-hia deffender só com a guarnição dos baluartes (uns 20 homens para cada, que soubessem ao mesmo tempo manejar as peças) se não fosse a face do lado do rio, que está quasi completamente desguarnecida, porque é uma espécie de estacaria cujos paus estão muito distanciados e que em vista do "muchem" é preciso está-los continuamente a renovar, o que eu tenho feito com alguns presos que a Intendência para aqui me manda, mas não é isto o sufficiente para a defeza, porque caso haja algum ataque, deve ser por este lado e não pelos outros, visto o grande campo que se avista e a altura da muralha destes. Consta-me terem-se feito já diversos orçamentos para esta obra e hoje envio a V. Ex.a dois, porque se podem fazer n'aquella face duas defeza, e são ou de fortificação permanente, que é levantar um muro com banqueta igual ao que circunda o resto da praça, ou visto a inclinação que tem o tereno d'aquelle lado, aproveitar a estacaria que ha, fechando-a mais e fazer uma espécie de fortificação semi-permanente; mas esta obra apesar de ser milhor para defeza, requer mais gente para a mesma, não é tão solida e mesmo para embellezamento sou de oppinião que se acabe de fechar a praça como já é o resto.
Necessita também a praça de alguns pequenos reparos nos baluartes e rebocada com cimento toda em volta, por cima dos muros, afim de evitar que as chuvas as demullam".
Em 1899, a praça de S. Marçal foi entregue à Companhia de Moçambique. Lavrou-se auto da entrega, aos 7 dias de Setembro desse ano, e dele consta o estado em que se achava a Praça:"Uma face construída de paus estando já muitos deles apodrecidos. As outras três faces e os quatro baluartes são de pedra e terra amassada estando a esboraoar-se por toda a parte, achando-se nalguns pontos quase completamente caídas. As duas portas acham-se em mau estado. As edificações da praça são as seguintes:
Uma casa térrea com parede de pedra e terra amassada rebocada exterior e interiormente, coberta a telha de Marselha e o chão ladrilhado, dividido interiormente em quartos, estando tudo em bom estado de conservação, serviu de paiol: Uma casa térrea com paredes de adobos coberta a zinco dividida em dois quartos, serviu em tempo de caserna, uma das paredes está fendida de alto a baixo, está no resto em regular estado de conservação. Uma casa térrea com paredes de adobos coberta de palha com três divisões serviu de residência ao Comandante da praça, estão as paredes e cobertura em mau estado. Uma casa térrea, restos de uma casa maior, muito velha, paredes de pedra e terra amassada, coberta de telha ordinária, serviu de cadeia, está tudo em mau estado".
A Companhia de Moçambique obrigava-se à conservação da Praça e a reentregá-Ia ao Estado, logo que este dela precisasse, no mesmo estado em que a recebera. Em 1903, porém, ó conselho de administração da Companhia pedia dispensa da obrigação de conservar a Praça, visto o adiantado estado de ruína em que a recebera e a inutilidade da velha fortificação. A Praça foi, então, pretexto de longa discussão — que, ao fim de contas, a não salvou de total ruína.
Permaneceu apenas o portal. Em 1902, o subintendente do governo em Sena comunicava que, achando-se o portal em risco de abater, apeara a lápide memorativa de construção em 1704, que foi reposta no portal, como ainda hoje (1969) se encontra.
Em 1905, o Governo do Território de Manica e Sofala dirigiu um ofício ao governador geral da Província, João António Azevedo Coutinho Fragoso de Sequeira:
"Junto envio a V. Exa. um desenho representando o portal da praça de S. Marçal de Sena, restaurado e completado com os ornamentos e pyramides que actualmente lhe faltam. ComoY. Exa. vê, o portal assim restaurado apresentaria um bello aspecto e constituiria um padrão elegante, fácil de conservar em bom estado, dispensando-se as ruínas das muralhas que actualmente tem aos lados e estão em derrocada, visto que, como V, Exa. sabe, as muralhas são construídas de pedra e barro. Caso V. Exa. concordasse a Companhia de Moçambique procederia à restauração do portal, tal como se acha indicado na figura ficando por conta da Companhia de Moçambique todas as despezas futuras da sua conservação abandonando-se por completo as ruínas das muralhas, pois como V. Exa. bem sabe, a praça de S. Marçal, nenhum valor militar tem, nem mesmo se torna necessária n'uma região onde V. Ex.a extinguiu em 1897 e depois em 1902, por completo, todo qualquer fermento de revolta. Lembraria também a V. Exa. caso concordasse com este processo de restauração do portal e criação do padrão, a collocação na parte posterior do dito portal, em local correspondente a lapide actual, ou outra lapide idêntica a que se colocará no padrão commemorativo do forte de Sofala mencionando ter sido esta reparação mandada executar por V. Ex.a e demolido o forte por terem sido aquelas terras definitivamente pacificadas por V. Ex.a, nos anos de 1897 e 1902 perpetuando assim o nome de V. Ex.a e os seus valiosos serviços n'aquella região. Pedia a V. Ex.a resposta urgente para poder começar breve a reparação, pois acabo de ser informado pelo chefe da circumscripção de Sena, tenente Manuel Monteiro Lopes, que a fenda existente ha muitos annos no arco do portal parece ter augmentado sensivelmente nestes últimos tempos e muito receio que as chuvas que estão próximas venham a provocar o desabamento do portal".
O governador geral aprovou a proposta que diz :
"No reinado d'El-Rei D. Carlos sendo Governador Geral da Província de Moçambique João António d'Azevedo Coutinho Fragoso de Sequeira e Governador do Território de Manica e Sofala Alberto Celestino Ferreira Pinto Bastos mandou a Companhia de Moçambique reconstruir este padrão. Anno de 1906".
Do forte de S. Marçal, hoje apenas se mantém de pé o portal, amparado pelas obras feitas em 1904 e 1905 com que se sustou o desabamento do arco.
Montes de terra, pedra e tijolo demarcam ainda o contorno da Praça, definindo melhor ou pior os muros, os baluartes e os locais das dependências interiores.
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Pesquisado na Revista “Monumenta” Nr. 5 - 1969 - Moçambique – autor Caetano Carvalho Montez
Julho/2016
Francisco Gomes de Amorim