MISÉRIA ENVERGONHADA
Uma das tónicas das campanhas demolidoras a que os noticiários já nos habituaram é a da miséria envergonhada e nós, ouvintes ou telespectadores, cá estamos, passivos, a tomar em conta tudo o que nesses oragos as pitonisas de ambos os sexos propalam. As misérias envergonhadas acontecem sobretudo naqueles que, até recentemente auto-sustentados, foram entretanto atacados por problemas de sobrevivência e envergonhadamente recorrem à caridade. E por que é que tal aconteceu? Porque estávamos a viver na mentira, os balões de oxigénio rebentaram e claudicaram os que não estavam preparados para a verdade.
Dito assim, com esta rudeza, até parece que estou a querer obter audiências como afanosamente fazem os jornalistas. Mas há modos menos grosseiros de dizer o mesmo, não procurando aplausos nem picos de audiência.
Recorrendo ao «economês», poderá dizer-se que o modelo de desenvolvimento baseado no consumo falhou e está agora a instalar-se um novo modelo baseado na produção de bens transaccionáveis. Mas, entretanto, a elasticidade da mão-de-obra não é suficiente para que os empregados nas empresas «viciosas» do velho modelo migrem directamente para as «virtuosas» do novo modelo; o desemprego aumenta e as novas situações de desamparo tentam passar despercebidas.
Recorrendo a linguagem mais sintética, dir-se-ia que, num modelo, a dívida infinita de cada um perante uma acolhedora sociedade envolvente define um dever absoluto que molda o comportamento individual e garante a homogeneidade social; por contraste, quando o bem se resume aos prazeres e ao útil, o egocentrismo privilegia-se e vinga o «sauve qui peut». Porque o que está em causa é a fricção entre o modelo moralista e o do pós-dever, o do dever perante o bem comum e o individualismo egoísta, do hedonismo e do desprendimento de toda e qualquer definição ética.
Baixando aos cenários noticiosos, eis o contraste entre a democracia cristã segundo a filha de um Pastor luterano criada na rude escassez comunista e o socialismo ocidental que floresceu na abundância materialista e que agora, exaurida a espiral consumista, cai na insustentabilidade por via da falência pura.
Numa época de ruptura do modelo hedonista em que o endividamento das famílias ultrapassara todos os limites definidos pela razoabilidade, em que mais valia ter do que ser e em que no futuro da despesa pública vingava o slogan «os ricos que paguem a crise», a solidariedade orçamental na União, afinal, não passava duma falácia dos propagandistas. E as dívidas devem agora ser pagas por cada devedor seja ele micro ou macro.
Tudo ficou assim subjugado ao pontual cumprimento do serviço das dívidas públicas de cada Estado e privadas de cada falido, sob pena de brusca cessação das ajudas externas entretanto obtidas e da ilusão criada pelos políticos adventistas do paraíso na Terra. E mais: no ponto a que se tinha chegado, a alternativa à austeridade seria o racionamento. Mas isso é uma evidência que os demagogos escondem dos seus eleitores.
Então, as mudanças estruturais trazem à evidência o engano que reinava pela mão de quem apregoava que o consumo gerava riqueza e os novos pobres têm agora vergonha das mentiras em que se tinham deixado cair. Mas os telejornais encarregam-se de evidenciar estas novas aflições cumprindo a saga que se auto-outorgaram de relatarem exaustivamente a objectividade dos factos eximindo-se a qualquer juízo moral. E os novos pobres são incentivados a ultrapassarem a vergonha e a gritarem contra os «maus da fita», os credores.
Será este o estertor do espectáculo pós-moralista e o anúncio duma nova ética do dever, mesmo que light? Não se trata duma aporia, apenas chegou a hora da verdade.
Eis a guerra em que todos hoje participamos e em que cada um é livre de escolher a sua própria barricada, a da verdade ou a outra.
Agosto de 2015
Henrique Salles da Fonseca