MEMORIAIS SEM CONVENTO
Belas páginas de uma história que por nós passou, para lembrar um 25 de Abril de 74, nos seus objectivos e nas suas transfigurações. Pertencem a António da Cunha Duarte Justo.
Os seus objectivos eram os dos capitães ledores de uma certa cartilha – os da descolonização imediata e da imediata deposição do regime vigente na altura. Todos – capitães, fugitivos do exército, militares escrevedores de livros sobre o futuro de Portugal e antigos prisioneiros de Caxias ou mesmo de Peniche (onde nascem os amigos) - se alambazaram nesses pratos fortes do “cozido” à portuguesa, mas, face ao atropelamento dos ideais de propriedade, incompatíveis com a nossa economia de courelas próprias, os dentre esses que discordavam dos defensores de reformas agrárias e de ocupações perversas, passaram a combatê-los depois, a partir dos idos de Novembro, em função de um retorno a uma ordem mais comedida e de defesa própria. Mário Soares bem se pode gabar de ter estado nas duas facções - a dos objectivos destruidores e a das transfigurações em proveito próprio e dos acompanhantes amigos – e bem se pode afirmar que agora sobrejaz nele a do retorno à delinquência contida nos ideais abrilinos radicais, para efeitos de novo apeamento governativo. E não é o único. Pegou moda o 25 de Abril na nossa mesa diária, mais do que nunca são evocadas as memórias da gloriosa data pelos nobres sucessores e herdeiros do programa quarentão. O último programa “O Eixo do Mal” foi um desfilar de evocações, pelos da casa, acrescidos de convidados especiais – Helena Roseta, Isabel do Carmo, Ana Gomes, Padre Vaz Pinto entre outros, incluindo um gracioso cantor, Manuel João Vieira, que, em meio das críticas ao Estado Novo e, para não destoar, ao Estado novíssimo, desfibraram as suas memórias desse dia, de jovens ainda vibrando segundo as vibrações familiares, ou, como no caso de Vaz Pinto, apenas segundo as suas de despaisado, outros já com cadastro na Pide e na prisão, como a valente Isabel do Carmo, já mãe de família na altura dos seus combates pela justiça. Mas também os jornais continuam a produzir memórias desse dia, caso do Público deste 25 de Abril, com inúmeros relatos de importância a somar às memórias dos 15 anos de Paula Torres de Carvalho da pág. 72, que tinha “a ideia de que tudo era para sempre”, o que compromete a imagem do rio que flui, segundo a opinião abalizada de Heraclito.
Um chorrilho, que promete não acabar, pois ainda hoje acordei com cantares do Zeca Afonso na rádio, entre os quais “Os Vampiros”, que regressam em força, donde se deduz que o 25 de Abril é para lavar e durar, tal a resistência do pano do seu fabrico.
E é por isso que eu volto também - (que se me desculpe a redundância) - a referir as minhas memórias desse dia memorável, que acho que já relatei, mas que nunca é demais relembrar, como andam todos a fazer, pois se nos colaram à alma como pegajoso grude: a minha amiga Flávia telefonou-me às sete da manhã a contar dum golpe nesse dia, aqui em Lisboa, que apeara Marcelo Caetano do sítio donde governava o país. Mas nem liguei, fui dar as minhas aulas, depois de despachar as crianças segundo as competências de cada uma, os mais velhos nas escolas, os mais novos entregues à Marta e ao Salvador. Mas a partir daí, já ciente dos factos, foi um ver se te avias de escritos breves tendentes a servir de obstáculo ao desabar babélico de espaços e fés, de que saíram “Pedras de Sal”. Em Julho desse ano, o sr. Folques da Livraria com esse nome, embora a medo, não resistiu à minha ânsia de publicar o livro na sua tipografia, cada dia acrescido de sucessivos textos que oneravam o custo inicial, embora o não tenha exigido, ciente da sua e minha loucura que nos livrava da definição de Pessoa, para D. Sebastião, de “besta sadia, etc”. Mas em 8 de Setembro, meu único dia de glória reconhecida, descia eu com a família para o Rádio Clube de Lourenço Marques - que as tropas portuguesas afectas ao regime tinham tomado de assalto e o povo moçambicano apoiava aos milhares, com comida e presença – quando uma colega, de pé com a sua família, num descapotável, me gritou, inflamadamente: “Berta, também lhe devemos isto a si!”. No dia seguinte, 9 de Setembro, foi o desmoronar definitivo da utopia. Um telefonema falou em retaliação e ordens de Lisboa, dando por findo o regabofe da utopia, e início à invasão descolonizadora da Frelimo. Tratei das papeladas para fixação cá, fomos retornados, o marido permanecendo ainda uns meses lá, a trabalhar e a embalar os trastes dos sonhos desfeitos, para aqui serem reiniciados numa falsa aparência de continuidade, na derrota e na readaptação.
E o 25 de Abril retorna em força, nos cantos e nas memórias, nas vozes desafiantes que desejam depor o Governo, na puerilidade maquiavélica de alguns, que um povo pueril volta a apoiar, indiferente às contradições desses tais.
Sic transit gloria mundi. Aos solavancos. Excepto a minha, que se apagou no mesmo momento, de conforto unicamente pessoal. Inútil.