LUVAS
De onde vem a expressão "pagar luvas", agora – infelizmente – muito em uso aqui neste canto da Europa e não só. Aliás, o correcto seria dizer "oferecer luvas" e vamos ver porquê. Quem levanta a ponta do véu é um súbdito de Sua Majestade britânica que deambulou por este mundo entre 1633 e 1703. Refiro-me a Samuel Pepys (leia pips).
Pepys ficaria para a história como o memorialista mais cândido de todas as épocas.
A sua franqueza despudorada levou-o a descrever tanto cenas íntimas da sua vida conjugal (e extra conjugal), como os pretextos de que se servia para cobrar por favores prestados e chegou ao ponto de registar actos de cobardia pessoal. Que mais se pode pedir. Tal franqueza provavelmente ficou-se a dever ao facto de ter escrito numa estenografia pessoal que lhe permitia registar rapidamente, em linguagem descuidada, despida de pontuação, mas dotada de elevado grau de vivacidade, o que ia observando no amplo circulo social a que tinha acesso, onde se incluía a Corte de Carlos II, marido de Catarina de Bragança (a quem Pepys faz várias referências).
Ao todo, Pepys compôs 54 cadernos, com entradas diárias, sem falha, que viria a legar à Universidade de Cambridge com a condição de esta zelar pela integridade da obra. Se bem que para a sensibilidade inglesa nada seja mais fascinante do que um código a decifrar, mesmo assim, os estudantes de Cambridge levaram mais de um século para conseguirem ler a mensagem que Pepys lhes legara. A primeira edição incompleta do Diário é de 1825 e a primeira completa só saiu da tipografia em 1893.
A entrada do Diário de 2 de Fevereiro de 1664, três meses depois de Pepys ter tomado assento na Junta Governativa de Tânger (onde se concediam ou recusavam licenças para comércio e navegação com aquela Praça, presente do rei de Portugal ao seu genro) reza o seguinte (tradução minha):
"Depois voltámos à Bolsa e daí seguimos para a Sun Tavern com o Sir W. Warren e com ele discorremos demoradamente e dele recebi bom conselho e boas sugestões. E, entre outras coisas, ele deu-me um par de luvas para a minha mulher, embrulhadas num papel, que me pediu para não abrir mas que senti duro. Disse-lhe que a minha mulher haveria de lhe agradecer e voltamos à nossa conversa.
Quando cheguei a casa, meu Deus, com eu estava ansioso que minha mulher saísse da sala sem que eu lhe pedisse, afim de ver o que estava no embrulho, o que, por fim, aconteceu. Um par de luvas brancas para ela, com 40 moedas de ouro fino dentro: e tanto alegrou o meu coração que não consegui comer nada ao jantar pelo prazer de pensar como Deus nos abençoa cada dia mais – e mais ainda fará à medida que eu consiga aumentar as minhas responsabilidades e os meus propósitos. Fiquei embaraçado sem saber se deveria ou não participar a minha mulher. Embora com custo, preferi nada dizer não fosse ela julgar que eu já estou em melhor condição para ganhar dinheiro do que na realidade ainda estou "
Que tal?