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A bem da Nação

LUTERO E A REVOLUÇÃO FRANCESA

 Estranha ligação, esta, de Lutero com a Revolução Francesa, não é? O que é que o teólogo alemão que viveu entre 1483 e 1546 pode ter a ver com a tomada da Bastilha em 1789? Aparentemente, nada. Mas...

 

A revolta dos camponeses na Alemanha em 1524-25 não é uma consequência directa da acção de Lutero pois já antes tinha havido revoltas semelhantes em 1476, 1492, 1493, 1502, 1513 e, em especial, a de 1514 em Württemberg. Mas os alemães tinham efectivamente fortes razões para se revoltarem porque eram pouco mais que escravos ou servos da gleba, espremidos por taxas e pelo trabalho gratuito (a corveia). A descoberta da América tornou a sua situação ainda pior pois o aumento do luxo e do prazer na Europa tornaram o dinheiro escasso por causa dos impostos decretados pela nobreza e pelo Papa para sustentarem esses novos luxos e prazeres. Para além do que a terra livre para ser arroteada pelos camponeses era pouca por haver grandes áreas reservadas à prática da caça pelos Senhores, tanto leigos como clérigos.

 

A base teológica luterana assentava (a ainda hoje assenta) na fórmula «uma só fé, um só Cristo, uma só Bíblia» enquanto o mote do Sacro Império Romano-Germânico consistia em «um só Deus, um só Papa, uma só doutrina, um só Imperador». O mundo «evangélico» de Lutero propunha a liberdade cristã, a supremacia da Palavra à da Igreja, o sacerdócio universal de todos os baptizados (em vez do específico ministério sacerdotal católico), o direito de os cristãos escolherem os seus pastores pregadores e a autonomia evangélica de cada comunidade (em vez da subordinação a um Bispo).

 

A relevância do princípio de que todos os baptizados são iguais perante Deus induziu a que a coligação entre natureza social, política, de direitos e liberdades com a natureza da graça e da salvação assumisse proporções revolucionárias sendo a sublevação dos camponeses tomada como premissa da verdadeira fé evangélica transmitida por Lutero. Mas não foi Lutero que inaugurou a revolução e sim dois ex-monges extremistas de quem Lutero rapidamente se demarcou, Andreas Karlstadt (1486 – 1541) e Thomas Müntzer (1490 — 1525). E foi Müntzer que rapidamente assumiu a liderança incendiária apresentando-se como um carismático que entrava em contacto directo com Deus e, possuindo revelações divinas, pregava que o juízo final estava próximo e que, por isso, o Imperador, os Reis e os Príncipes iriam desaparecer por serem pecadores mergulhados no poder terreno. O mundo deixaria de ser uma monarquia para passar a ser uma teocracia e ele, Müntzer, passaria a fazer a ligação entre o céu e a terra. E o mais tenebroso é que os camponeses, maioritariamente analfabetos, acreditavam em tudo isto e explodiam em revoltas sucessivas que alastravam a toda a Alemanha destruindo castelos e casas menos humildes, ocupando propriedades, espoliando, roubando e expulsando os que eles consideravam culpados da sua servidão.

 

Até que aos espoliados, vítimas de ocupação e roubo, «chegou a mostarda ao nariz». E assim foi que – já Lutero reconhecidamente demarcado de tudo isto – no dia 14 de Maio de 1525 foram 8 mil camponeses sitiados em Frankenhausen pelos exércitos unidos do protestante Filipe de Ássia e do católico Jorge da Saxónia. Recusando-se ao diálogo, foram os revoltosos derrotados em poucos minutos sendo 5 mil chacinados de qualquer maneira e 300 decapitados após julgamento sumário. De notar que, uma semana antes, cerca de 18 mil revolucionários tinham sido passados pelas armas na Alsácia. Calculam os historiadores que em toda a Alemanha tenha havido mais de 100 mil mortos durante esta revolução.

 

Eis como tal banho de sangue «segurou» o statu quo político e social por mais 264 anos até que, um bocado mais para poente, outros tomaram a Bastilha. Mas desta vez a argumentação foi profana, se é que argumentação houve nesse 14 de Julho.

 

Sim, Lutero nada teve a ver com a Revolução Francesa mas...

 

Lisboa, 14 de Maio de 2014

 

 Henrique Salles da Fonseca                

 

 

 

BIBLIOGRAFIA:

 

 «LUTERO, Palavra e Fé», P. Carreira das Neves, Editorial Presença, 1ª edição, Março de 2014, pág. 314 e seg.

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