«LUCKY», O CÃO
Todo o cristão de qualquer religião sabe que cão pequeno se amofina com cão maior e que com cães à bulha sempre pode dar mau resultado alguém meter-se lá pelo meio. Não é por mal, mas na refrega sempre há uma dentuça que roça a pele e lá vem um rasgo a merecer pontuação.
O «Lucky» é um canzarrão tão manso quanto o seu tamanhão e o «Farrusco» um meia-tigela com bigodaças que não gosta de carros nem de «colegas» da sua espécie.
E por qualquer razão menos explicada em canês, eis que o «Farrusco» se amofina com o «Lucky», o leva ao desespero e sofre as consequências que também David não temeu com Golias. E, como nos homens, não se metam com pachorrentos… e eis que o «Farrusco» deu duas voltas pelo ar depois de ter andado de rojo. Vieram os donos mas só o da parte do calmeirão se aventurou lá pelo meio. Isso não o livrou da tal dentuça que rasgou sem deixar assinatura.
- Quantos pontos?
- Talvez uns 3 ou 4 mas antes deles lá estarem, muito foi o sangue que jorrou. E foi de esguicho, lá isso foi.
Grande alvoroço na aldeia com rosnadelas, latidos, brados dos homens a tentarem pôr ordem na desordem e, mais do que tudo, a gritaria das mulheres que, só elas, suplantavam todos os decibéis. E foram elas que me sugeriram estar a passar-se alguma calamidade de amanhã vir nos jornais e que me fizeram assomar à varanda.
A cena acabou com os dois lutadores apartados «a pontapé sabe Deus em quem» e em reclusão nas respectivas casotas, em casa de cada dono. E o meu vizinho, o do calmeirão, a caminho do Posto de Saúde para a apropriada cozedura.
Só uns 20 minutos depois é que as mulheres serenaram e deixaram de gritar com os cães, já eles por certo não se lembrando de quê. Mas elas, sim, lembravam-se e vão ter conversa para um bom par de horas. Aí isso é que vão!
Faz anos que o calmeirão chegou à aldeia. Ninguém sabe donde veio mas há quem diga que as cadelas grandes que vivem ao pé do «Boina Verde» e lá almoçam e jantam, vão parir à Mata dos Medos e que, a partir de certa altura, mandam os filhos embora pois o restaurante não está ali para abrir falência com tanta boca a alimentar. E o calmeirão deve ter descido a encosta e apareceu na aldeia a dar ao rabo, todo satisfeito por lhe cheirar a gente boa. E foi aceite como novo aldeão. Dormia aqui, almoçava ali, todos lhe falavam, nada lhe faltava.
Um dia, brincando com a «Nina», a cadela da minha vizinha, à porta do café central, não percebeu que vinha lá um carro e foi atropelado. Espatifaram-lhe a mão esquerda e o pobre bicho entrou em desespero sem perceber por que lhe tinham feito tanto mal. O dono do café agarrou-o ao colo, pôs a mulher (a minha vizinha) ao volante e foram a correr para o hospital veterinário onde o calmeirão foi atendido imediatamente. A cirurgia passava bastante além do orçamento do meu vizinho pelo que sedaram o calmeirão, lhe puseram os ossos tão no sítio quanto possível, cozeram-no e puseram-lhe uma tala. Que ia ficar manco. E isso, se não gangrenasse e se não tivessem que o amputar.
E foi assim, entalado, que o conheci. As dores já tinham desaparecido, não houve gangrenas, os ossos lá foram soldando e o cão foi assim baptizado de «Lucky».
- Eh pá! Tiveste muita sorte!
É claro que a partir daí, o «Lucky» foi adoptado pelo meu vizinho sem discussão do resto da aldeia. Mas o dono só o podia passear ao raiar do Sol e à noitinha, depois de regressado da lota. Então, dispus-me a passear o calmeirão que já me conhecia das visitas regulares que lhe fazia e das lambarices que lhe levava. Fiz um amigo que me reconhece de ano para ano e abana o rabo cada vez que o visito no Inverno.
É claro que andou entalado só uns meses e, afinal, tendo ficado com um aprumo esquisito, corre e brinca na perfeição. De tal modo bem que atirou com o metediço «Farrusco» ao chão e depois ao ar, pôs os homens aos pontapés e as mulheres a gritar.
É mesmo um canzarrão.
Henrique Salleda Fonseca
(com o «Lucky» a lamber-se e com o braço esquerdo todo torto)