LIDO COM INTERESSE – 87
Título – O BEBEDOR DE HORIZONTES
Autor – Mia Couto
Editora – CAMINHO
Edição – 2ª, Fevereiro de 2018
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Sinto-me dispensado de apresentar o Autor mas não me dispenso de dizer algo sobre ele.
Estabeleço três grandes diferenças entre José Saramago e Mia Couto:
- Uma, a de que um é odioso e o outro chega a ser simpático;
- Outra diferença é a de que o odioso já recebeu o Nobel e o outro ainda não;
- A um, não deixo que me influencie nem por osmose; ao outro, leio.
- Mia Couto escreve «coisas» que me interessam; o outro, não sei.
Moçambicano e branco, assume uma postura em que parece pedir desculpa por ser branco, tanto o mal que diz dos brancos, dos portugueses em particular. Fá-lo disfarçadamente nuns livros, mais directamente noutros mas, no mínimo, com uma pedra no sapato contra nós.
Cumpre-nos a nós, portugueses, reconhecer que nem tudo o que fizemos em África merece os maiores louvores mas, daí a propagandear apenas os defeitos omitindo as virtudes, é uma vergonha para quem o faz. O que seria a alternativa à nossa presença nesses países? Não respondo porque não quero agora entornar o caldo.
Sim, a literatura africana de língua portuguesa tarda em se afirmar sem complexos de colonialismo. Parece que lá para as bandas de Cabo Verde já vão aparecendo escritores verdadeiramente independentes.
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No final, o Autor informa em anexo que «Este livro é uma obra de ficção. Grande parte das personagens e das histórias foram, no entanto, construídas com base em pessoas reais e factos históricos. (…)»
A trama refere-se à captura de Gungunhana, de sete das suas mais de trezentas mulheres, do filho Godido, do tio e conselheiro Mulungo, do cozinheiro Ngó e do arqui-adversário Zixaxa e suas três mulheres, tudo personagens verdadeiras. A narradora é a intérprete de que o Autor se serve para que nos cheguem as falas de quem não sabia falar português.
Independentemente da história (que coincide com a História), Mia Couto consegue com mestria transmitir-nos muito do misticismo dos povos do Sul de Moçambique e, nesse particular, merece os maiores louvores literários e também humanistas. Basta isto para se justificar esta leitura.
Frases que chamaram a minha atenção:
- Sobre a questão linguística, a rainha Dabondi refila sobre o modo rude como é mandada calar - «Calo-me na mesma língua do homem que me humilha» - (pág. 22);
- Sobre a magreza de muitos dos soldados brancos - «(…) magros vultos com mais farda do que corpo.» - (pág. 35);
- Sobre os complexos de inferioridade dos portugueses - «A nossa verdadeira pequenez não vem da geografia mas do modo como nos pensamos.» - (pág. 44);
- «(…) só há um critério para medir a grandeza de um comandante: o modo como trata os vencidos.» - (pág. 45);
- «(…) como um bêbado se agarra a uma garrafa já vazia.» - (pág. 62);
- Sobre quem foi a Lourenço Marques assistir à apresentação dos captivos - «(…) gente de nações tão distantes que nenhum mapa lhes faz justiça.» - (pág. 116);
- «A bravura não nasce de ser pensada. A coragem não mora no cérebro, emerge das entranhas.» - (pág. 144);
- «Enquanto sobreviver o medo, os deuses não serão destruídos pelas máquinas.» - (pág. 238);
- «(…) se não há futuro, tornamo-nos iguais aos bichos e não há melhor para as guerras que um bicho fardado de soldado.» - (pág. 248);
- «O frio é tanto que as sombras não se soltam dos corpos.» - (pág. 267);
- «Cozinhar não é fazer comida, é sentar os deuses à nossa mesa». – (pág. 285);
- «Rir junto é um abraço.» - (pág. 325);
- «(…) os nomes são tatuagens na alma. Não há morte que os apague.» (pág. 342).
Janeiro de 2019
Henrique Salles da Fonseca
(no púlpito dos laureados Nobel)