LIDO COM INTERESSE – 80

Título – ESSA DAMA BATE BUÉ
Autora – Yara Monteiro
Editora – GUERRA E PAZ
Edição – 1ª, Setembro de 2018
Romance do mais realista que pude alguma vez imaginar. E logo eu que deixara de ler romances…
Quem quiser ter uma ideia bem aproximada daquilo em que Angola se transformou desde que assumiu a plena soberania, não pode deixar de ler este pequeno livro com apenas 197 páginas de texto distribuído por capítulos curtos.
Para não cometer inconfidências, extraio da contracapa que a personagem principal, Vitória, nasceu em Angola mas foi criada pelos avós na Malveira, em Portugal, para que se transformasse numa «boa esposa». Mas, não ultrapassando o trauma de ter sido abandonada pela mãe, uma guerrilheira, foge para Angola pouco antes do casamento à procura da mãe.
Chega a uma Luanda completamente caótica, de flagrantes contrastes sociais, aguarela em que tragédia e comédia roçam ombros. A Autora traça aqui um quadro tão realista que dá ao leitor a impressão de se encontrar envolvido pelo cenário absurdo que descreve a selva que é a actual capital angolana.
Mais do que isto, o drama por que vêm passando tantos angolanos na tentativa de recomposição duma sociedade destruída por décadas de guerra civil, a ditadura dos «todo poderosos» do regime político instaurado, o «salve-se quem puder» a que os simples se têm que entregar para garantirem a sobrevivência.
* * *
Da badana extraio que a Autora nasceu no Huambo em 1979 mas que com dois anos de idade veio para Portugal, que casou, que vive no Alentejo e se dedica à escrita a às artes plásticas.
* * *
Partes que chamaram a minha atenção:
Num último abraço de despedida, os braços trocaram de corpos, os rostos trocaram de olhos, que trocaram de alma. (pág. 16)
Conforme nos vamos aproximando do povoado, a mais visível marca da guerra é o silêncio imposto à vida diária. Até mesmo o capim tem a respiração suspensa. (pág. 17)
«Faz de conta que estás na tua casa» é uma formalidade da boa educação que intenta colocar a pessoa convidada à vontade. É bem-intencionada mas é falsa. Ou, pelo menos, assume que os hábitos na nossa casa são os mesmos do que dos de quem nos recebe. Por norma, não é o mesmo. Não fazer de conta que estamos na nossa casa é meio caminho andado para garantir uma boa convivência quando se é visita. (pág. 37)
(…) mãos que choram lágrimas caladas. (pág. 84)
[No aeroporto, ele] gosta de observar os viajantes. Imagina-lhes a vida que levam e a que tentam esconder. O mestre sabe que a aparência é enganadora. Confia mais na ausência da luz que revela a sombra. (pág. 135)
A Lua acomoda-se na parte do céu que mais lhe convém. (pág. 156)
[Em romagem, as mulheres vão] caminhando apoiando os pés na fé. (pág. 191)
* * *
E, concluída a leitura, a pergunta que me ocorre é: - Terão os povos angolanos evoluído algo no relacionamento entre si próprios desde os tempos em que por lá andou Paulo Dias de Novais?
Outubro de 2018

Henrique Salles da Fonseca
