JARDIM DA ESTRELA – 3
Hoje, tive boleia até ao jardim, cheguei folgado. Com muita tranquilidade, dei uma volta inteira ao recinto deixando-me ultrapassar ou cruzando-me com quem não tem mais nada que fazer e, por isso, corre. Não vi ninguém a fazer yoga nem tai-chi. Só vi uns quantos velhotes na «batota» e um casal no banco do quiosque da biblioteca. Como sempre, o coreto em votos de silêncio. Uma pena, tanto subaproveitamento de um espaço em que deveria haver filas de músicos à espera de lugar no coreto, «overbooking» na reserva de recantos de relvados para grupos de ginástica lenta, grupos de ouvintes de contadores de histórias… E se chover? Tendas, claro está.
Então, aproveitando o silêncio que jorrava do coreto, entendi que era boa altura para aproveitar o Verão que veio passar o Outouno a Lisboa e sentei-me perto da estátua de João de Deus, o da «Cartilha Maternal» e dos jardins-escola.
Foi então que pensei na barafunda que é a toponímia lisboeta com este jardim a chamar-se oficialmente «Jardim Guerra Junqueiro» cuja estátua está na Praça de Londres enquanto aqui está a de João de Deus, outra de Antero de Quental e um busto do actor Taborda.
De Antero lembrei-me d’O Palácio da Ventura
Sonho que sou um cavaleiro andante
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor…
… e mais não sei de cór. Lembrei-me também das Conferências do Casino e de As causas da decadência das nações ibéricas… E, é claro, lembrei-me daquele banco público em Ponta Delgada…
Do actor Taborda lembro-me apenas de ouvir os meus avós a falarem dele mas confesso que não me recordo do que diziam. Só me lembro que se fartavam de rir com o Chaby que, mesmo sem dizer uma palavra, punha as plateias todas a rir. Seria a mímica? Talvez.
Do João de Deus, como já disse, lembrei-me da Cartilha Maternal e do mérito absoluto que ele teve no combate ao analfabetismo. E lembrei-me também duma polémica teológica que ele teve com o meu avô, Tomás da Fonseca. Nunca li porque se trata duma discussão sobre fé e eu acho que a fé não se discute. Se fosse uma discussão sobre teologia propriamente dita, leria de certeza; sobre fé, não me interessa.
Levantei-me e fui lentamente até um quiosque que vende cafés e pastéis de nata pensando como, apesar dos esforços do João de Deus e seus seguidores, ainda hoje temos analfabetos e um relativamente baixo nível médio de instrução.
E pensei que ao fim deste tempo todo desde as Conferências do Casino, ainda andamos «à procura da rolha» no processo das causas do nosso atraso – eu creio que essas causas têm muito a ver com o tema do João de Deus…
Já estava a chegar junto da montra dos pastéis de nata quando meditei no actor Taborda como sendo, de todos os figurões representados na estatuária do Jardim, o mais réussi já que foi ele que nos convenceu, não sei quantas gerações depois, a viver num mundo irreal, muito fora das nossas capacidades, a fingir que somos o que não somos, como fazem os actores.
Actores, fingidores, tudo «numa boa», à espera de mais uma troika.~
Outubro de 2019
Henrique Salles da Fonseca