HERESIAS - XXVI
A DÁDIVA como modo de governar - III
- Há no modelo de mercado dois traços que o distinguem de todos os outros modelos de organização social (e, consequentemente, económica) que é possível, hoje, conceber:
- Não funciona sem liquidez (vulgo “o dinheiro”, que é uma criação puramente social);
- Assume explicitamente a informação limitada, a incerteza - e, em resultado disso, expõe todos os agentes económicos, sem excepção, ao risco.
- Em última análise, no modelo de mercado, só os movimentos de liquidez (ou “movimentos de tesouraria”) interessam: por serem quantidades (expressas numa unidade monetária) que envolvem sempre dois ou mais agentes económicos. Podem assim ser observados tal qual (num primeiro momento) e reconciliados por quem quer que seja (a posteriori);
- O risco, por sua vez, é a consequência inevitável de um encadeamento de circunstâncias incontornáveis:
- Nenhum agente económico dispõe de informação completa: (i) sobre a realidade económica que o rodeia; (ii) sobre as intenções e expectativas dos agentes económicos com os quais se relaciona; (iii) sobre o estado da economia no futuro;
- A informação limitada leva a agir permanentemente por tentativa e erro, sem alternativa - e a incerteza, na tentativa de ser superada, vai gerar incerteza, algures;
- Do jogo entre intenções e restrições nominais não resulta, forçosamente, um volume de liquidez em circulação para o qual: (i) o desemprego estrutural (esfera real da economia) seja nulo; (ii) a inflação (esfera nominal da economia) não ponha em causa o equilíbrio externo (isto é, a restrição de liquidez do Banco Central); [Na teoria, um tal volume de liquidez diz-se “optimal”]
- Choques exógenos, ocorrem de quando em vez - e são imprevisíveis, por definição.
- Na realidade, apenas a liquidez e o risco têm uma dimensão verdadeiramente “macro”, na exacta medida em que afectam todos - mesmo quem não seja agente económico. Tudo o resto que por aí se ouve e lê (consumo, investimento, PIB, etc.) são categorias estatísticas obtidas à luz deste ou daquele critério de observação, com uma pitada maior ou menor de subjectividade.
- Acontece que o modelo de mercado puro não é completo. De facto:
- Não tem como determinar o volume optimal de liquidez em circulação;
- Não tem como reintegrar quem perca a qualidade de agente económico - ou seja, quem perca a capacidade para ser a contraparte pagadora em contratos monetários, por não possuir liquidez.
- Este último problema revela uma característica estrutural do modelo de mercado (e, em geral, de todos os modelos de base contratual): na ausência de medidas não-contratuais (as transferências sociais), gera economias que, na prática, tendem a excluir (marginalizar), ora este, ora aquele - e, por consequência, tendem a contrair-se, a encolher.
- Dito de outro modo: o modelo de mercado, deixado a ele-próprio, é um sistema que, mesmo partindo de uma situação de equilíbrio (supondo que tal existe), tende a eliminar emprego e a diminuir o produto potencial. È a consequência directa da circularidade a que fiz referência na “Heresia” anterior: só quem é agente económico pode continuar a ser agente económico. Nele, a simetria entre “destruição” e “criação” não é um dado adquirido, longe disso.
- O pensamento económico dominante (desde o séc. XIX, com Jevons, Walras, Pareto, Marshall e, mais recentemente, von Mises, Schumpeter, Hayeck, Samuelson, Friedman, Lucas e tantos outros) não esconde a preocupação de provar à saciedade que o modelo de mercado é “óptimo” no sentido que referi mais acima: deixado a ele próprio atingirá sempre um estado em que o desemprego estrutural é nulo e a inflação não afecta os equilíbrios “macro”.
- Por vezes, esta corrente de pensamento vai mais longe, afirmando que o modelo de mercado é não só o único compatível com o Estado de Direito, mas também aquele, igualmente único, capaz de promover o bem estar generalizado (diz a teoria: o “óptimo paretiano”). São afirmações de natureza puramente ideológica que o simples facto de o modelo de mercado ser um sistema incompleto (insusceptível de permanecer em equilíbrio estável se deixado a ele-próprio) desmente liminarmente.
- Não deixa de ser interessante notar que a solução para estes dois problemas tem sido procurada no modelo que, no plano teórico e ideológico, está nos antípodas do modelo de mercado - a saber: o “modelo do ditador iluminado” (“iluminado” por ser discípulo directo da filosofia das “Luzes”). E a propósito das transferências sociais não se afasta tanto assim do modelo senhorial (extorquir para dar e partilhar).
- A característica principal do “modelo do ditador iluminado” é que assenta na hipótese da informação completa - e em tempo real ou, mesmo, ex ante - sobre a esfera real da economia. Designadamente, sobre o volume e composição do produto potencial e sobre as preferências dos “súbditos”.
- “Súbditos” porque, no “modelo do ditador iluminado”
- Não tem como reintegrar quem perca a qualidade de agente económico - ou seja, quem perca a capacidade para ser a contraparte pagadora em contratos monetários, por não possuir liquidez.
- Não há lugar para outros mais agentes económicos, uma vez que é o “ditador iluminado”, e só ele, que decide o que produzir, como distribuir e qual a orientação a dar ao excedente;
- Só o “ditador iluminado” é agente económico (e, consequentemente, fonte de inovação);
- O “ditador iluminado” é a contraparte única (e esclarecida) de todos os contratos;
- As preferências individuais têm permanecer tal como o “ditador iluminado” as percebeu - pois, se variarem inesperadamente, põem em causa a hipótese da informação completa.
- A determinação do volume da liquidez em circulação tem sido confiada ao Banco Central - como se este dispusesse de informação completa: (i) sobre o estado da economia; (ii) sobre as intenções (e as expectativas) dos agentes económicos; (iii) sobre os efeitos que cada medida de política monetária terá na esfera real e na esfera nominal da economia.
- Não dispõe - e, por isso, opera por tentativa e erro, instrumentalizando o sinal e a amplitude das variações do volume de liquidez. As estratégias de política monetária são estratégias incrementais (de variações e ajustamentos) - e, consequentemente, são, também elas, causa de incerteza.
- São os Governos que se têm encarregue de resolver o outro problema. E, em todo o lado, a solução tem sido encontrada nas transferências sociais - como se os Governos, também eles, tivessem informação completa sobre o que seja necessário para aceder ao modelo de mercado, ou para nele ser reintegrado como agente económico. Tentativa e erro, uma vez mais - logo, mais incerteza.
- No modelo de mercado desenham-se nitidamente quatro tipos de actividades relacionadas com a imperiosa necessidade de reproduzir a restrição nominal que todos os agentes económicos experimentam. Actividades bastante padronizadas e facilmente identificáveis:
- Intermediação comercial (contratual): “comprar para revender”;
- Intermediação financeira (contratual): “pedir emprestado para emprestar”;
- Intermediação monetária (contratual): “criar passivos com funções monetárias” [A teoria ignora esta forma de intermediação, apesar de ser o factor distintivo dos Bancos Comerciais como Veículos de Investimento];
- Intermediação fiscal (não-contratual): “tributar para financiar gastos públicos”.
- Em geral, a intermediação: (i) tem por efeito apropriar e redistribuir rendimento nominal; (ii) não está ao alcance de todos os agentes económicos, por igual; (iii) abrange realidades que pouco têm em comum. O que caracteriza o exercício da intermediação é o facto de envolver sempre o património (Balanço, Contas Nacionais) do agente económico que a exerce - expondo-o, assim, ao risco.
- Aliás, as três primeiras modalidades de intermediação, todas de origem contratual, permitem desdobrar os contratos monetários em dois grandes grupos:
- Os contratos monetários não-financeiros - associados à intermediação comercial;
- Os contratos financeiros - na origem da intermediação financeira e da intermediação monetária.
- Mas as diversas modalidades de intermediação não esgotam as relações económicas que podem ter lugar numa economia de mercado. Por exemplo: (i) o consumidor, enquanto tal, não exerce qualquer forma de intermediação; (ii) a empresa que comercializa, apenas, a produção própria, também não; (iii) tal como as entidades que se dediquem a prestar exclusivamente serviços de qualquer natureza.
- E onde fica a dádiva, no meio de tudo isto? Pode ficar na caridade cristã (e na zakat islâmica), se for remetida para o foro privado. Ou pode ser acrescentada às funções do Estado - e, então, terá de recorrer à intermediação fiscal. Os efeitos na economia de uma e de outra via estão longe de ser equivalentes.
(continua)
Novembro de 2015


