Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

A bem da Nação

HERESIAS - XV

DE COMO A IDADE DA PEDRA SOBREVIVE AINDA NA TEORIA ECONÓMICA

 Jean Baptiste Say (1767-1832)

v        Não há economista que se preze que não encha a boca com as palavras “poupança” e “investimento”, dois dos conceitos que fazem da dismal science o que ela hoje é.

v        Ainda e sempre a célebre “Lei de Say”, segundo a qual “a poupança gera o investimento que lhe dá sentido” (e, vice-versa, “o investimento induz a poupança que o financia”). Isto, apesar de vários modelos teóricos (desde logo, os modelos Keynesianos) os porem, aqui e ali, em causa ou, mesmo, os ignorarem de todo (por exemplo, o modelo de R. Lucas).

 

v        A questão de fundo é, porém, outra, e bem mais prosaica: “poupança”, “investimento”, não é fácil identificá-los ex ante - muito menos observá-los no dia a dia, para melhor os quantificar.

 

 

v        Começando pelo “investimento”. A nível “macro”, investimento é toda a despesa que tenha por efeito directo aumentar (versão forte), ou manter (versão fraca) o produto potencial. É, pois, um conceito eminentemente ex post. Ex ante, não há “investimento” – há, sim, “despesas” feitas com tal intenção, mas que podem muito bem não dar em nada (os estádios de 2004, e tanto “elefante branco” por aí, são disto bom exemplo).

 

v        Era “investimento” que Karl Marx tinha em mente quando escreveu sobre a “reprodução simples” e a “reprodução alargada” dos meios de produção. Aquela primeira a manter a capacidade produtiva (outro modo de ver o produto potencial); esta última, ampliando-a.

 

v        Alguns seguidores de Marx (entre eles, C. Bettelheim) deram um passo mais e introduziram o conceito de “excedente económico” como resultado observável, logo ex post, da “reprodução alargada”. Conceito valioso que o epicentro do pensamento económico localizado nos EUA tem ignorado com sobranceria, talvez por emanar de frog leg eaters.

 

v        Mas já Condillac (séc. XVIII) se tinha apercebido de que ao “excedente económico” se poderia dar fins muito diversos: do ponto de vista da reprodução dos meios de produção (“simples” ou “alargada”, aqui tanto faz), destinar um prado para pasto de vacas leiteiras não é exactamente o mesmo que ter por lá uns cavalos de corrida tosando erva.

 

v        E a nível “micro” nem sequer é assim. Desembolsos que qualquer um faça com o propósito de aumentar o seu rendimento disponível no futuro são vistos, a priori, como investimentos - ainda que, chegado o momento (isto é, ex post), tal não se concretize. E que dizer dos desembolsos  que modificam a distribuição de rendimentos futuros (sejam eles quais forem), mas não o nível global desses rendimentos (como acontece com os “investimentos de carteira”, por exemplo)?

 

v        O conceito de “poupança” é ainda mais intrigante. Quando a vida se resumia à esfera real da economia (actividades de subsistência com alguma troca directa), a “poupança” era, de facto, uma privação de consumo que, se bem aplicada, garantiria a produção futura. Tudo se resumia, então, a não consumir hoje para poder consumir amanhã (distribuição dos consumos no tempo).

 

v        Só que nem essa “poupança”, nem os “investimentos” em que era aplicada, tinham expressão monetária (isto é, não davam origem a trocas monetárias) – apesar de assegurarem a continuidade das condições materiais que iam sustentando essas populações. E não tendo expressão monetária, não havia uma unidade de medida comum que facilitasse o seu registo e o seu tratamento estatístico.

 

v        Somos assim remetidos para a “poupança” que tem expressão monetária. Mesmo aqui, porém, as coisas estão longe de ser simples. Desde logo, porque a “poupança monetária” é um conceito que pertence à esfera nominal da economia - e nada garante que lhe corresponda um excedente na esfera real da economia (condição necessária, mas não suficiente para ampliar o produto potencial).

 

v        Esta “poupança” pode significar, apenas, uma redução temporária na liquidez em circulação (o que os clássicos designavam por “entesouramento”) – e, se mobilizada para adquirir bens patrimoniais pre-existentes (ou instrumentos financeiros em mercado secundário), provocará, apenas, uma redistribuição pontual da liquidez sem qualquer efeito no produto potencial.

 

v        A nível “macro”, há, pois, que jogar com três conceitos:

(i) um, o de “excedente económico” (esfera real da economia);

(ii) outro, o de “variação das Disponibilidades Líquidas sobre o Exterior” (esfera nominal da economia);

(iii) outro ainda, o do “endividamento” dos agentes económicos que integram essa economia (de novo, a esfera nominal da economia).

E são, justamente, os efeitos da esfera nominal da economia projectados na esfera real (dito de outro modo, a actividade dos Bancos) que baralham o contexto onde faz algum sentido falar de “poupança”.

 

v        A economia como um todo, se poupar, poupa internamente (quando a despesa interna é inferior ao rendimento disponível) e/ou poupa relativamente ao exterior (quando apura um excedente na Balança de Transacções Correntes). Mas a essa “poupança” podem ser dados muitos outros destinos que não aumentar o produto potencial.

 

v        Para as Famílias, “poupança” (ou aforro), num dado período, é sinónimo de não despender em bens e serviços a totalidade do rendimento nominal disponível. Mas o excedente de liquidez (não confundir com “excedente económico”) que daí resultar pode ser:

-            Ou encaminhado para servir (reembolso do capital e/ou pagamento dos juros) dívidas passadas;

-            Ou usado para aumentar o património familiar através da aquisição, já de bens preexistentes, já de instrumentos financeiros em mercado secundário (os tais “investimentos de carteira”);

-            Ou não passar de um dinheirinho guardado na gaveta (entesouramento);

-            Ou, enfim, ser colocado à disposição de um terceiro, já através da subscrição de instrumentos financeiros que este emitir, já mediante um depósito bancário (que também é um instrumento financeiro, diga-se de passagem).

No três primeiros casos, deixará intacto o produto potencial. No último caso, poderá (sublinho poderá) aumentar o produto potencial, mas não por iniciativa do aforrador.

 

v        Para as Empresas não Financeiras, à primeira vista, falar de “poupança” seria o mesmo que falar de lucro retido, por analogia com as Famílias. O problema está no risco que corroi os proveitos já contabilizados, mas ainda por cobrar - e que, mais tarde, pode reduzir esse lucro a nada.

 

v        A alternativa seria ver no saldo da Tesouraria não Financeira Corrente (ou Tesouraria Operacional) a medida da “poupança”. Mas este saldo pode ter origem, unicamente, na diferença entre prazo de cobrança e prazo de pagamento - o que, reconheça-se, nada tem a ver com o conceito teórico de “poupança”.

 

v        A solução tem sido olhar para a variação, se positiva, do saldo de Tesouraria (Liquidez Livre) como aproximação ao conceito não observável de “poupança”, transferindo-o do ex ante para o ex post - e, com isso, roubando-lhe grande parte do poder explicativo sobre as decisões empresariais. De alguma maneira é como se as Empresas não Financeiras fossem vistas, não como “origens de poupança”, mas como “veículos de investimento”. Isto é, como entidades financiadas e, não, como financiadoras.

 

v        No Estado (aqui visto como o aparelho do Estado), a questão parece à partida de meridiana clareza: aí, a poupança toma a forma de superavits do Orçamento Corrente (quando nem todo o dinheiro captado através da tributação é restituido à economia pela despesa pública corrente, incluindo as transferências sociais, e pelos juros pagos). Aforro que os contribuintes, todos eles, são forçados a fazer, mas sobre o qual não têm poder de decisão.

 

v        Pode acontecer, porém, que a política de transferências sociais aumente o rendimento disponível de umas quantas Famílias, permitindo-lhes poupar mais ou, quem sabe?, poupar pela primeira vez. Trata-se, então, de um processo redistributivo do rendimento:

(i) dentro do mesmo exercício, se o Orçamento permanecer, apesar de tudo, equilibrado;

(ii) intertemporal, se o desequilíbrio orçamental fizer aumentar a Dívida Pública. Isto significa que a intermediação fiscal pode ser fonte de “poupança”.

 

v        Poupança directa que:

(i) ou vai financiar despesas públicas de investimento (que logo se verá se aumentam, ou não, o produto potencial);

(ii) ou permanece na esfera nominal da economia por motivo de reserva e precaução.

 

v        Poupança indirecta se, independentemente do saldo do Orçamento Corrente, a redistribuição do rendimento levada a cabo pelas transferências sociais, aumentar a poupança de Famílias ou a liquidez das Empresas não Financeiras.

 

v        A actuação do Estado leva, assim, a desdobrar o conceito de “poupança” segundo duas vertentes:

(i) poupança voluntária versus poupança forçada;

(ii) poupança não subsidiada versus poupança subsidiada.

 

v        Restam os Bancos Comerciais – o que torna esta história bem mais animada (cont.)

 A. Palhinha Machado

Janeiro de 2014

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2014
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2013
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2012
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2011
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2010
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2009
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2008
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2007
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D
  235. 2006
  236. J
  237. F
  238. M
  239. A
  240. M
  241. J
  242. J
  243. A
  244. S
  245. O
  246. N
  247. D
  248. 2005
  249. J
  250. F
  251. M
  252. A
  253. M
  254. J
  255. J
  256. A
  257. S
  258. O
  259. N
  260. D
  261. 2004
  262. J
  263. F
  264. M
  265. A
  266. M
  267. J
  268. J
  269. A
  270. S
  271. O
  272. N
  273. D