ENCONTRO DE ESCRITORES - (6 bis)
Agnósticos, ateus e outros incrédulos, eis a plêiade dos que não acreditam em almas de um outro mundo. Eu também já fui desses. Até que ouvi chamar por mim já umas três vezes e abandonei aquele grupo inicial. Um dia, conto; hoje, não.
Esoterismo à parte, vamos ao que é exotérico. E os escritores que hoje invoco também pertenciam àquele grupo inicial mas o esoterismo deu-lhes por certo a volta e, mais dia- menos dia, desafio-os a virem até cá para conversarmos um pouco. Talvez que Santo Ambrósio volte a ser de grande utilidade. Ou São Boaventura, para não estar sempre a incomodar o mesmo.
Referi na crónica anterior o meu Avô. Chamava-se (ou chama-se) José Tomás da Fonseca e esteve por cá de 1877 a 1968. A sociedade portuguesa era na sua juventude predominantemente analfabeta[1] e nas terras beirãs onde lhe nasceram os dentes, os Padres tinham um enorme ascendente sobre a sociedade boçal. Querendo estudar, o meu Avô teve que ir para Coimbra interno no Seminário onde, para além do ensino secundário, fez o curso de Teologia. Mas, mesmo no final, «deu corda aos calcantes» e não tomou votos[2]. Então, muito resumidamente, assumiu como suas as duas missões que nortearam toda a sua vida: o combate ao analfabetismo adulto e o fim da hierocracia que na prática existia nas zonas rurais. Todo o cenário em que se movimentou fez dele um insubmisso, um rebelde. Mas, apesar disso, sempre foi muito afável. Eu costumo dizer dele que foi a pessoa simultaneamente mais culta e mais afável que alguma vez conheci. E dele guardo um poema que julgo traduzir a essência do que lhe andou sempre no espírito.
OS REBELDES
Eu amo a luta
E abrigo a paz no coração.
Meu credo é feito d’alma
E feito de perdão.
Vivo de bênçãos,
Como a flor vive da luz,
Pregando na montanha,
Assim como Jesus,
As delícias do amor
E a paz universal.
Baionetas para quê?
Se a baioneta é igual
À faca do assassino!
Em vez d’homens de guerra,
Camponeses lavrando
E semeando a terra…
Que eu não amo o que mata
Ao meio duma rua,
Mas o que cria um filho
Ou guia uma charrua.
E embora admire e louve
Essa mulher que foi
Ao meio de Paris
Executar um herói,
Muito mais louvo e quero
Essa mulher d’aldeia
Que vai à fonte,
Acende o lume
E faz a ceia
E abre o peito
Dando a um filho de mamar.
Corday [3] é uma tormenta,
A camponesa um lar.
Criar – eis o preceito;
Amar – eis o dever.
O nosso peito abri-lo
A todo o que o quiser:
Aos que são cegos, luz;
Aos que têm fome, pão.
Por isso é que eu abrigo
A paz no coração.
Tomás da Fonseca
in Os Deserdados, 1909
Era o meu Avô preferido, sobretudo porque foi o único que conheci.
Na crónica anterior referi igualmente o meu Tio, também ele filho do meu Avô como o meu Pai. Chamava-se (ou chama-se) António José Branquinho da Fonseca mas ficou conhecido só pelos apelidos. Esteve por cá entre 1905 e 1974. Experimentou vários estilos literários, desde o poema lírico ao romance passando pela novela, drama e poesia. Contudo, ele próprio dizia que a sua expressão natural era o conto. E digam os seus biógrafos mais eruditos o que quiserem, eu digo que ele sempre se manteve ligado ao bucolismo da sua meninice. Dentre a extensíssima obra publicada, extraio o poema que segue que é, de longe, um dos de que mais gosto:
CANÇÃO DA CANDEIA ACESA
Ainda havia luz no céu
Quando se encostou à minha porta
A sombra da noitinha
E ali se adormeceu...
Mas como é de uso na aldeia,
Costume tão velho já,
Ao sentir-se alguém à porta
Eu disse-lhe: - Entre quem está...
Entrou. Era a noite... E, então,
Eu senti bem a tristeza
Daquela gente que não pode
Ter candeia acesa.
Eu tenho-a, Senhor;
Eu nem sei a riqueza que tenho:
Tenho uma terra
E também uma casa
E um rebanho...
E, além de tudo, um amor,
A quem quero e que me quer...
E que a vontade do Senhor
A faça minha mulher!
Era o meu Padrinho de baptismo preferido, até porque não tive outro.
Então, para levantar uma ponta do véu relativamente ao mistério inicial do meu abandono do grupo dos agnósticos e outros incrédulos, aqui vou eu de seguida...
Olá!
Diz-me aqui, baixinho,
Desde quando sentes companhia
Quando os outros te vêem só.
Também vês aquela sombra
Que passa pelo canto do olho
E sentes aquele murmúrio
Junto do teu ouvido
E que os outros não sentem?
Fala-me
Daquela outra dimensão
Onde estão os nossos queridos,
Esses que por aqui vogam...
Que sentimos por perto,
Vemos em penumbra,
Que amamos pelo que foram,
Que amamos pelo fumo que são,
E que vemos pelo coração.
Sim, nós sabemos
Que eles estão aí,
Que nos vêem.
Sim, eles são os nossos anjos da guarda
E sabem que nós sabemos.
Pois é isso que nos conforta.
E que venha a nós o seu reino
De pureza e de bem.
Ámen!
E assim me despeço. Passai todos muito bem!
Janeiro de 2017
Henrique Salles da Fonseca
[1] Em 1910, a taxa de analfabetismo adulto rondava os 90%
[2] Para saber mais, v. p. ex. em http://www.antigona.pt/autores/luis-filipe-torgal/
[3] Marie-Anne Charlotte Corday d'Armont (Normandia, França, 27 de Julho de 1768 - Paris, França, 17 de Julho de 1793) entrou para a história ao assassinar um dos mais importantes defensores da política do Terror (Jean-Paul Marat) instaurada em França pelos Jacobinos.