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A bem da Nação

ENCONTRO DE ESCRITORES - 2bis

(…)

- E a propósito de Almada, creio que será interessante o nosso anfitrião também dar voz às escritoras. Que acham? - pergunta Almeida Garrett.

De imediato, o grande Luís anuiu mas lembrou que a sua Jau nada escrevera.

- E lá por isso, a minha D. Madalena também não. Mas tanto a tua Jau como a minha Madalena são o resultado das nossas imaginações. Não, eu sugiro mulheres escritoras, elas próprias.

- Muito bem, vamos sugerir isso ao nosso anfitrião.

Falados, D. Francisco, o anfitrião, concordou mas logo lhes pediu que intercedessem junto de S. Pedro para que deixasse as Senhoras virem até ao lado de cá.

- S. Pedro? Porquê ele e não Santa Clara, por exemplo? - replicou o chique João Baptista. – Tratando-se de Senhoras, parece mais conveniente não meter homens pelo meio, por muito Santos que sejam.

- Sim, sim! – diz o Luís – Nada melhor que a intercessão de Santa Clara para termos por cá garantida Soror Mariana, a das cartas ao francês.

- Muito bem, seja! – diz o terreno D. Francisco – Vejam lá, então, se falam com Santa Clara.

E não é que falaram mesmo? E não é que obtiveram mesmo a autorização? Brilhantes! Pediu a doce Clara que dissessem onde deveriam as Senhoras aparecer e a que horas...

 

Foi então a vez do nosso amigo e anfitrião puxar pela cabeça para imaginar onde poderia ser a reunião das escritoras. Em Alcobaça não, obviamente, por ser mosteiro masculino.

Vai daí, mete-se ao caminho de Beja e procura o Convento da Conceição, das clarissas, onde residira Soror Mariana, mais conhecido por Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição para falar com a Dona Abadessa. E qual não é o espanto do nosso amigo D. Francisco quando se lhe depara o Museu Regional de Beja, totalmente laicizado (não propriamente profanado), sem Abadessa nem monjas. Pede então ao contínuo de serviço à portaria que lhe obtenha um encontro com a mais alta hierarquia do dito Museu. (...) Que sim, podiam usar uma das galerias desde que no dia de encerramento semanal ao público.

No dia aprazado, postas as mesas com os recipientes de «bebidas paulatinas» (nada de bebidas alcoólicas) e bolinhos conventuais (mas dos secos para obstar a molhangas e outras besuntices), logo ficou estipulado que o que sobrasse deveria ser distribuído por critério ad hoc, ou seja, a bel-prazer de quem por ali manda. E D. Francisco, o terreno, logo foi dizendo que sobraria quase tudo pois só ele comeria alguma coisa; que as espirituosas convidadas são austeras em beberagens e comissões.

 

Só o anfitrião presente e garantido o recato por expressa ordem de extra hominis, caiu o silêncio dentro da galeria colunada e...

... conhecedora dos cantos da casa, entra serenamente à hora prevista a antiga residente no Convento, Mariana Alcoforado. Dada uma olhada calma pelos rótulos das bebidas e pelos pratinhos com bolos, ia a nostálgica e platónica apaixonada pelo Marquês de Chamilli dirigir-se a D. Francisco quando, vinda do Céu de Angola, entra Alda Lara (1930-1962) que já vinha à conversa com a moçambicana Noémia de Sousa (1926-2002). A goesa Maria Elsa da Rocha (1923-2005) foi a seguinte, mas logo seguida pela santomense Alda Espírito Santo (1926-2010). E quase se iam atropelando umas às outras ao passarem, saudosas, pelas gulodices em que já não metem dente quando todas param de espanto perante um chapéu «belle époque» esvoaçante por cima duma pele de raposa anunciando a chegada da mais bela flor que sempre se considerou esquecida, mas não espancada...

Tentando pôr fim ao sururu dos gritinhos de surpresa, beijinhos de saudades e outros salamaleques, foi a vez de o anfitrião sugerir o critério de só falar uma Senhora de cada vez. (...) que sim, que estava bem. E que seria ele, o terreno, a pôr ordem na chamada à palavra. Que sim, que fosse.

- Então, minhas Senhoras, vou pedir a cada uma que nos fale sobre uma obra que considerem importante dentre todas as que produziram. Comecemos por Soror Mariana...

- Obrigada, querido Francisco por me dar a palavra. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, confesso perante vós, minhas irmãs e colegas de escrita, o meu sincero arrependimento por ter pecado por actos escritos, pensamentos lúbricos e terríveis omissões, tudo em favor desse malévolo francês que me enfeitiçou com lindas promessas que hoje considero escabrosas, imundas e sarnentas e que depois me desprezou com um sonoro silêncio. E foi esse silêncio que me conduziu ao desespero, à ignominiosa escrita que em França os pecaminosos tanto aplaudiram e me conduziram ao estrelato, às honras que hoje tanto me afligem. Foi em desespero que me deixei conduzir pelas vias do pecado e só porque é infinitamente bom, o Pai me perdoou no meu arrependimento e me acolheu ao seu lado direito. Hoje venho aqui perante vós reconhecer os meus erros e declarar-vos que numa próxima vida me dedicarei afincadamente ao estudo para conjugar melhor os verbos em francês. Chamilli vai pagar-mas!

E assim se retirou para perto dos bolinhos, sem lhes tocar. Grande penitência. E na vingança confessada, lá foi Mariana «tirando bilhete» para o Purgatório se não mesmo para as brasas eternas...

 

Estava D. Francisco, o terreno, quase em estado de choque com o destino adivinhado da monja quando viu uma sombra a acenar como que a pedir a palavra. Era a bela flor da porrada.

- Sim, bela flor. Diga-nos um poema seu, por favor.

E assim foi que todas viram o tal chapéu «belle époque» dirigir-se até junto duma coluna para dali ouvirem...

 

Eu quis amar, amar perdidamente!

Amar só por amar: Aqui... além...

Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…

Amar! Amar! E não amar ninguém!

 

Recordar? Esquecer? Indiferente!...

Prender ou desprender? É mal? É bem?

Quem disser que se pode amar alguém

Durante a vida inteira é porque mente!

 

Há uma Primavera em cada vida:

É preciso cantá-la assim florida,

Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

 

E se um dia me fiz pó, cinza e nada

Que fosse a minha noite uma alvorada,

Então eu soube-me perder... p’ra me encontrar...

 

E D. Francisco, o terreno, meio perdido no meio de tanta perdição, só pensava: - Ah! Grande sebenta que hás-de penar eternamente... Mas Deus é grande e perdoou-lhe. Só que deve estar ao Seu lado esquerdo.

 

Apressadamente, deu o nosso amigo terreno a palavra a alguém que lhe garantisse santidade na ex-vida terrena. E escolheu Alda que recordou o seu testamento...

 

À prostituta mais nova

Do bairro mais velho e escuro,

Deixo os meus brincos, lavrados

Em cristal, límpido e puro...

 

E àquela virgem esquecida

Rapariga sem ternura,

Sonhando algures uma lenda,

Deixo o meu vestido branco,

O meu vestido de noiva,

Todo tecido de renda...

 

Este meu rosário antigo

Ofereço-o àquele amigo

Que não acredita em Deus...

 

E os livros, rosários meus

Das contas de outro sofrer,

São para os homens humildes,

Que nunca souberam ler.

 

Quanto aos meus poemas loucos,

Esses, que são de dor

Sincera e desordenada...

Esses, que são de esperança,

Desesperada mas firme,

Deixo-os a ti, meu amor...

 

Para que, na paz da hora,

Em que a minha alma venha

Beijar de longe os teus olhos,

Vás por essa noite fora...

Com passos feitos de lua,

Oferecê-los às crianças

Que encontrares em cada rua... 

 

Comovido, D. Francisco olhou em redor e viu todas as almas do outro mundo ali presentes com nós nas gargantas e lágrimas a correr suavemente pelas nuvens com formas de rosto.

 

Engoliu em seco, aclarou a voz e convidou Noémia de Sousa a dizer o seu «Magaíça».

 

A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda

Engoliu o mamparra,

Entontecido todo pela algazarra

Incompreensível dos brancos da estação

E pelo resfolegar trepidante dos comboios.

 

Tragou seus olhos redondos de pasmo,

Seu coração apertado na angústia do desconhecido,

Sua trouxa de farrapos

Carregando a ânsia enorme, tecida

De sonhos insatisfeitos do mamparra.

 

E um dia,

O comboio voltou, arfando, arfando...

Oh nhanisse, voltou.

E com ele, magaíça,

De sobretudo, cachecol e meia listrada

E um ser deslocado

Embrulhado em ridículo.

 

Ás costas – ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?

Trazes as malas cheias do falso brilho

Do resto da falsa civilização do compound do Rand.

 

E na mão,

Magaíça atordoado acendeu o candeeiro,

À cata das ilusões perdidas,

Da mocidade e da saúde que ficaram soterradas

Lá nas minas do Jone...

 

A mocidade e a saúde,

As ilusões perdidas

Que brilharão como astros no decote de qualquer lady

Nas noites deslumbrantes de qualquer City.

 

Calado, pensou: - Aqui estão as nossas 800 toneladas de oiro, a pesada herança do Doutor Salazar.  Pensou mas calou também a verdade inconfessada por muitos dos que se dedicaram a dizer mal de Portugal mas, quando doentes, se recolhiam à nossa guarda. E nós guardámo-los e demos-lhes tudo o que sabíamos dar. E por cá morriam e também eles nos davam tudo o que tinham: a vida.

Reconhecido, Francisco apenas se limitou a dizer – Obrigado!

 

A noite ia comprida e Santa Clara mandou recado de que lá em cima já eram horas das vésperas. Que as rezassem e regressassem ao Céu.

(...)

Foram os Magos seguindo

A estrela do Oriente

E com presentes confessam

A glória de Deus nascente.

(...)

E quem não falou desta vez, falará da próxima...

 

Cumpridor, D. Francisco agradeceu às Senhoras, viu-as sair através duma parede e pensou que da próxima teria que... o quê?

 

Henrique Salles da Fonseca

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