ELES ANDAM POR AÍ...
Quem? Os anjos e os Santos.
Parece ao Leitor que ensandeci? São só duas pequenas histórias sendo uma passada comigo e a outra ao meu lado, num semáforo.
Há dias, um estrangeiro que estava estacionado junto ao passeio da rua por onde eu circulava, decidiu sair do estacionamento sem olhar pelo retrovisor para ver se lá vinha alguém e amachucou com alguma violência o lado direito do meu carro. Pelo bafo que exalava, percebi de imediato que ele estava etilizado e como não queria que eu chamasse a Polícia, deu-se de imediato por culpado assinando a «Declaração Amigável» mesmo antes de eu a preencher por completo.
Apesar de amolgado, o meu carro podia andar e eu segui para casa mas a certa altura comecei a sentir que alguma coisa estava errada. E foi nessa altura que ouvi um carro a trás de mim a apitar e vi pelo retrovisor vários sinais de luz. Parei logo que me foi possível e ele parou do meu lado esquerdo para me dizer que eu tinha um pneu vazio. Sim, para além da chaparia amolgada e cortada, o etilizado dera-me também cabo do pneu.
E este que agora me avisava, sugeriu-me que parasse ali à frente onde não incomodaria o trânsito para mudar a roda com espaço e tranquilidade. Assim fiz e notei que ele parou a trás de mim. E qual não foi o meu espanto quando o jovem saiu do carro dele e se meteu ao trabalho de me substituir a roda não me deixando fazer mais do que abrir o porta-bagagens do meu carro para aceder às ferramentas necessárias e, no final, ser eu a fechar o dito porta-bagagens.
Eu fiquei perplexo sem saber como lhe agradecer ao que ele se limitou a dizer que tivera muito gosto em me ajudar. E assim como aparecera no meu retrovisor sem eu me ter apercebido, já ia a meter-se no carro dele para se ir embora quando eu lhe pedi que, pelo menos, me deixasse dar-lhe um abraço. Depois do abraço, meteu-se no carro e foi-se embora. Não sei quem era, não lhe fixei o nome que titubeou e nunca mais o vi. Desapareceu no trânsito e eu só sei que se ele não era um anjo é porque fora mandado por algum.
* * *
Naquele cruzamento de ruas por onde passo todas as manhãs, está quase sempre um velhote imóvel envergando um colete publicitário e ostentando uma revista «Cais» julgando eu que ele tenha mais alguns exemplares na sacola que sempre encosta ao poste do semáforo. Nesta dezena de anos que levo de o ver ali parado, só o terei visto vender, quando muito, duas ou três revistas.
Via de três faixas, paro sempre na do meio e naquele dia frio e chuvoso também o fiz até porque na do lado do velhote estava a parar um outro carro. E reparei que o condutor comprou uma revista. Terá sido das muito poucas vezes que vi o imóvel velhote mexer-se. Mas alguma coisa de anormal chamou a minha atenção. Foi então que reparei que o condutor ao meu lado se contorcia a tirar o casaco sem sair de trás do volante dando-o ao velhote que se apressou a vesti-lo mesmo por cima do colete da «Cais». E o semáforo mudou para verde, nós avançámos, o velhote lá ficou mais resguardado do frio e da chuva e...
... e eu pensei que São Martinho subiu aos altares por gesto igual ao do anónimo ao meu lado.
Sim, eles andam por aí! Uns são anjos e outros são Santos. A modernidade está no anonimato.
É que, afinal, há muito mais gente boa do que os telejornais dão a entender.
Junho de 2016
Henrique Salles da Fonseca
(na estrada para Hué, Vietname, NOV14)