E, ENTÃO, FOI ASSIM…
Silêncio!!!
Pois…! Lá por Évora já há cinquenta anos era assim - ouviam-se as pégadas dos gatos nas pedras das calçadas e nos canteiros dos jardins.
Um silêncio minguante das euforias soalheiras, de meditação, de afago, emotivo, do cheiro a carvão quente no ferro de engomar, da sombra do saguão nas costas da casa pequena naquela rua estreita a descer para as Portas de Avis…
Sim, é com poesia e em poesia que entro em Évora. Foi desse modo que há mais de cinquenta anos lá entrei pensando que às portas da cidade deveria haver guarda-roupas para que, entrando, nos pudéssemos mudar para trajes medievais e foi assim ontem quando «ouvi» as pégadas dos gatos.
- E o que foste lá fazer?
- Não, não fui ouvir as pégadas dos gatos nos canteiros do jardim da Celeste, não! Fui comemorar os cinquenta anos da licenciatura em Economia que lá obtive no então Instituto Superior Económico e Social, o ISESE, célula estaminal da actual Universidade.
- E comemoraram bem?
- Creio que sim. Começámos por celebrar os que já cá não estão e agradecemos por ainda cá estarmos. Fizemo-lo numa orada que foi da Ordem de Avis no Páteo de S. Miguel, o Arcanjo protector de Portugal e daí rumámos ao afago do esófago no restaurante de um hotel magnífico que não existia quando por lá andei a estudar os da Escola de Chicago (exactamente, o Stigler mas sobretudo o Friedman que é de quem me lembro melhor) e outros da de Viena (para já, lembro-me bem do Hayek e do von Mises).
- E eram muitos, ao fim de cinquenta anos?
- Fomos menos do que gostaríamos de ter estado. Uma trintena, mais um, menos outro. De Economia só estávamos nove. Mas é claro que sempre há quem não possa ir porque a mulher está com o joelho partido, a outra que tem o marido entrevado, o achaque nas costas não o deixa conduzir… e há sempre aqueles que nem respondem aos e-mails a dizer se sim ou sopas. Mas estivemos bem. E, sobretudo, achei que todos transbordávamos de serenidade. Mais achaque, menos achaque, mas de sabedoria confirmada, firme e serena. Bem sei que estou quase cego, preciso de ajuda nas escadas, pelo que talvez tenha sido por isso que não vi rugas - Senhoras bem apresentadas, homens lustrosos.
- E houve discursos?
- Palavras breves de homenagem aos fundadores do Instituto, os Condes de Vill’Alva que, bem vistas as coisas, foi quem deu o «pontapé de saída» para a transformação de Évora de um burgo adormecido para ser reposta no mapa do futuro.
- Como assim?
- Estou a falar da Évora até aos anos 50-60 do século passado que, desde a extinção da Universidade por ordem do Marquês de Pombal, se limitava a ter um ensino truncado no 7º ano do Liceu, tinha a Escola de Regentes Agrícolas, uma Escola Comercial e uma Escola Salesiana que ensinava as artes e ofícios da nossa tradição. E quem chegasse ao final do Liceu, tinha três hipóteses: ou ficava amorfo por ali em redor a vegetar com conhecimentos gerais mas impróprios para qualquer utilidade, ou se dedicava à frustração ou, podendo, emigrava para continuar a estudar. E quem emigra, só regressa no final da vida para entregar os ossos à terra ou nem sequer isso. Era, pois, um ensino promotor do nada ou quase nada e, pior, de um ambiente depressivo, sem esperança. O inverso quase perfeito do que se pretende com as mais elementares políticas de desenvolvimento local e regional. E os Condes de Vill’Alva, ao reintroduzirem os estudos superiores com o objectivo de promoverem a reabertura de uma Universidade, transformaram a frustração em virtualidade positiva, deram aos locais a oportunidade de continuarem a estudar até ao topo das suas aspirações sem necessidade de emigrarem, de se estabelecerem utilmente na sua própria terra. E essa foi uma revolução fantástica que é frequentemente esquecida e raramente comemorada. Esse foi o primeiro tópico da homenagem que lhes prestámos.
Nascida a esperança, foi preciso organizar um corpo docente e o processo foi entregue à Companhia de Jesus que se encarregou de trazer para a cidade os seus membros apropriados à função lectiva nos cursos de Economia e de Sociologia. Mas não se limitaram aos seus próprios membros pois foram por esses montes além à procura da intelectualidade que por lá estava escondida e quase-improdutiva. E assim renasceu mais esperança por ali fora… e apareceu o embrião de uma «academia» como não havia em Évora desde há dois séculos.
Mas não só. Fomos alguns escorraçados pelas greves académicas que grassavam em 62 e 63 em Lisboa que rumámos a Évora para calmamente estudarmos ao som das pégadas dos gatos nas calçadas.
E assim nasceu o futuro em Évora, este que agora está. E por isso achamos que deve ser resgatada a memória dos Condes de Vill’Alva.
- Muito bem! E que mais disseram?
- De substantivo, mais nada. Mas ficou muito por dizer porque nós todos, na casa dos 70, já somos como a Nau Catrineta, «temos muito que contar» mas, para não corrermos o risco de nos tornarmos uns maçadores, moderamos a palavra e ficam as memórias para cada um saborear a seu modo. Mas há uma memória enigmática que há mais de cinquenta anos carece de explicação e que vou agora, só agora, lembrar aos que me lerem: «E São Pedro e São Paulo?»
E, então, foi assim.
Maio de 2019
Henrique Salles da Fonseca