DO DESENVOLVIMENTO - 1
Na minha passagem por dois Comités de Peritos da EFTA[i], tive um colega na representação portuguesa que fazia humor perguntando se Portugal seria o país mais atrasado do primeiro mundo ou o mais desenvolvido do terceiro mundo. O meu sentido de humor não era (nem é) assim tão elástico e apenas esboçava um sorriso não dando seguimento à conversa. Mas ficava a pensar…
Numa conversa informal com um membro norueguês de um desses Comités, fiquei a saber que nos anos 20 do séc. XX tinha sido localizado num recanto obscuro de um fjord longínquo um adulto que vivia isolado com a sua avó numa cabana de madeira alimentando-se da pesca e de pouco mais e que, pasme-se, era analfabeto. O escândalo por haver um norueguês adulto que não sabia ler nem escrever foi tal que o assunto mereceu debate no Parlamento e o Governo caiu.
Pela minha parte, costumo comparar alguns países:
- A Suíça e o Afeganistão são países interiores mas existe uma relativamente importante marinha comercial suíça com portos de amarração em Génova e em Amesterdão (e importante tráfego fluvial ao longo do Reno); é sabido que a Suíça não tem riquezas no subsolo mas nada se sabe acerca de eventuais riquezas mineiras afegãs; nenhum dos dois países tem relevante propensão agro-pecuária mas a Suíça tem a «Nestlé». Assim, à pergunta sobre o que justifica tão díspares níveis de desenvolvimento, só me ocorre responder com a qualidade das pessoas que residem em cada um desses países;
- O Japão não tem recursos naturais e Angola é naturalmente ubérrima. Também aqui, à pergunta sobre qual a razão para tão díspares níveis de desenvolvimento, só encontro a resposta na qualidade das pessoas dentro de cada um desses países. A propósito, a frase do Professor Doutor Manuel Enes Ferreira (ISEG,UL) quando lastima esses «pobres países ricos».
Historicamente, em Portugal, chegámos à República com uma taxa de analfabetismo estatístico[ii] adulto a rondar os 90% e em 1974 ainda essa taxa era da ordem dos 25%. No Recenseamento Geral da População realizado em 2011, esse flagelo ainda era de 5%. No próximo Recenseamento, em 2021, adivinho com alguma facilidade, a redução que verificaremos ficará a dever-se sobretudo ao forte incremento dos óbitos causados nas mais altas faixas etárias pela pandemia. Não faço futurologia, lamento que continue a haver em Portugal quem apelide a alfabetização de adultos de «arqueologia social»[iii].
Um conhecido meu, que tinha sido Prior de uma populosa (e popular) Paróquia de Lisboa, referiu-se a inúmeros jovens universitários frequentadores da sua igreja e actividades correlativas como tendo «espírito de analfabetos». Perante o meu espanto, perguntou-me ele se eu seria capaz de imaginar a vida doméstica de um jovem (rapaz ou rapariga) que é estudante do ensino superior mas cuja família é composta por avós totalmente analfabetos, pais com o ensino primário incompleto e já quase esquecido, casas em que o nível literário mais elevado é um jornal de futebol surripiado da tasca da esquina… Gente esta equiparada a objectos arqueológicos… Contudo, conseguiram fazer com que das suas casas surgissem estudantes universitários. E que se passará nas outras casas donde não surgem jovens com vontade de subir na vida? Temo que enxameiem os noticiários mais abjectos da comunicação social.
Sem querer maçar com informação estatística, não resisto a referir o que encontrei no Eurostat que nos diz que, em 2019, nos 28 Estados da UE havia 25,7% da população com apenas (nível máximo) o patamar elementar da escada da escolaridade mas que na Suécia esse índice era de 20,8% e em Portugal uns tenebrosos 47,6%. Por aqui se vê o esforço que ainda temos que fazer para chegarmos à média europeia.
O cenário urbano acima descrito é extremamente pesado e representa enorme inércia ao desenvolvimento não só pela evidente falta de produtividade mas também pelo peso das políticas públicas de protecção social. É claro que não se pode deixar essa gente sem tecto nem amparo mas o problema está em que dos pântanos não surgem rosas nem cravos.
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Em paralelo com o ambiente socialo urbanismo periférico, o mundo rural tem vindo progressivamente a assemelhar-se a um lar para a terceira idade. Em Portugal, a empresa agrícola não tem ao seu dispor os mecanismos que lhe garantam mercados transparentes nem métodos lógicos de formação de preços. Basta reconhecermos a existência de um fortíssimo lobby do comércio constituído por um facilmente identificável oligopsónio para constatarmos que o «jogo» está todo viciado em desfavor da oferta.
Resumindo, os problemas sociais da periferia urbana – nomeadamente nas nossas maiores cidades - constituindo quase totalmente uma relação directa da desertificação do mundo rural pelo facto de em Portugal à oferta cumprir a amarga tarefa de servir os interesses da procura. Ou seja, desfavor da produção, privilégio do consumo, crónicos défices comerciais externos, empolamento da dívida externa privada, insolvência nacional, recurso recorrente ao FMI e quejandos apoios…
E se assim é no mundo rural, nas pescas ainda é pior com um método de formação dos preços na primeira venda[iv] que comprime a oferta sob a quase totalidade do risco e a procura a definir todas as regras desse mercado.
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De tudo, para concluir que ainda nos falta muito para nos constituirmos como um modelo de desenvolvimento.
(continua)
Dezembro de 2021
Henrique Salles da Fonseca
Em tempo: para quem quiser consultar as estatísticas e índices da escolaridade nos Países europeus, sugiro o «Eurostat – Escolaridade» e, a nível mundial, o «Relatório do Desenvolvimento Humano do PNUD» (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)
[i] - Comité de Peritos Comerciais e Comité de Peritos Aduaneiros e de Origem
[ii] - Analfabetismo estatístico corresponde àqueles que não sabe ler nem escrever
[iii] - Expressão que ouvi da boca de quem então presidia à ANEFA-Agência Nacional para a Educação e Formação de Adultos entretanto extinta e substituída pelas «NOVAS OPORTUNIDADES»
[iv] - Leilão descendente, invertido