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A bem da Nação

DAS RUÍNAS NASCE ARTE

 

 

Na Fábrica de Braço de Prata foi inaugurada a 1 de Outubro a XXXª Exposição Ruin'Arte, de fotografias de Gastão de Brito e Silva, espaço onde expôs pela primeira vez, juntamente com Jorge Castro Henriques, sobre os bairros orientais de Lisboa

 

Ruin'Arte.png

 

Das ruínas nasce arte. Com igual rigor se poderia dizer que da arte (de construção) nascem ruínas. É sobre esta parcela de um Portugal arruinado que se desfaz em pó e cinzas, que falam as imagens de Gastão de Brito e Silva. Será a ruína uma inevitabilidade, uma prova de incúria face aos laços de reconhecimento neste país que somos? Será mais um processo de auto-flagelação?

 

As fotografias mostram os efeitos devastadores dos interesses da construção civil ante os quais são impotentes as tentativas de ordenamento urbano. Várias das construções registadas não sobreviverão ao tempo. Muito do casario vernáculo foi sacrificado a opções urbanísticas discutíveis que invadiram velhos centros históricos, áreas de protecção de edifícios classificados e paisagens qualificadas.

 

Exemplos, não faltam. As casas delapidadas no bairro das Fontainhas, no Porto, em volta da primeira cintura industrial da cidade, ainda mais arruinadas desde 2009, com o incêndio e a derrocada da encosta. A torre da quinta de Coina, a torre do inferno erguida entre 1897 e 1914 pelo “rei do lixo”, o comerciante maçónico Manuel Martins Gomes Júnior, no meio de um complexo habitacional abandonado; a fábrica dos Cabos Ávila, vista diariamente por dezenas de milhares de habitantes da Grande Lisboa.

 

Retrato de um país em processo de desindustrialização

A exposição é também um retrato de um certo país em processo de desindustrialização. A Fábrica de Fiação Cunha Morais, em Crestuma, com os escritórios devastados e que levou 800 operários ao desemprego; a Fábrica Efanor (de carrinhos de linha), em Matosinhos, a Sereia (Moinho do Breyner) (fábrica de moagem), no Seixal, e a do Paleão (de tecidos), em Soare, a Central termoeléctrica do Freixo (Porto), ou a Fábrica de Cerâmica das Devezas.

 

Expor ruínas não é, necessariamente, um lamento. Pode ser um apelo positivo, em vários sentidos. Documentar o abandono generalizado de construções civis, religiosas, militares, industriais que degradam a paisagem e a que urge pôr cobro, através de medidas de salvaguarda. Ajudar a focar o papel dos especialistas de património no processo de revalorização. Sugerir valências que se poderiam atribuir a muitos destes conjuntos edificados, de várias épocas e estilos.

 

A defesa do património construído contra a sanha destruidora de um certo progresso vem de Almeida Garrett e Alexandre Herculano no século XIX, Pais da Silva no século XX, de Jorge Custódio em anos mais recentes. Agora, como escreveu Mário Jorge Torres a propósito do filme Ruínas, de Manuel Mozos, de 2010, trata-se de um «Portugal revisitado pela noção de perda, substituindo à monumentalidade da História a anonimidade do fragmento irrisório».

 

Ruínas, há muitas. A ruína clássica que inspira a retomar a perfeição. A ruína romântica que assume a culpa do passado. Com Brito e Silva, encontramos a ruína de um certo fim da história. Estes destroços de casas rústicas e solares, de igrejas, fábricas, fortalezas e hospitais multiplicam-se na paisagem do país de norte a sul.

 

Gastão de Brito e Silva mostra o país-subúrbio

As fotos construídas por Gastão de Brito e Silva mostram o país-subúrbio que existe em Portugal. As ruínas são captadas com um fundo de nuvens revoltas e com um espesso chiaroscuro de cinzas, um testemunho da obsolescência de modelos sociais, como lembra Jane Jacobs em Morte e Vida das Grandes Cidades.

 

Mas não estamos perante o lamento de um saudosista. Não se trata de criticar leis de salvaguarda do património. Nem apontar o dedo a técnicos e profissionais do sector que são competentes. Nem entrar em debates sobre a Carta de Veneza e outras orientações da UNESCO para preservar a memória comum. Os organismos especializados, a DGEMN e o IPPAR, privilegiam o restauro de castelos, grandes monumentos religiosos e civis, e a adaptação de velhas ruínas conventuais a unidades hoteleiras, dando-lhes novo uso.

 

Ruínas com excesso de abandono

Sucede que há muito mais por fazer. Donde, este grito de alarme. Ruínas com excesso de abandono, deixam de ser recuperáveis. Algumas das retratadas durarão mais uns Invernos… Depois ficará uma massa disforme e agressiva na paisagem. Para serem ruína, retiraram-lhes primeiro a alma, a razão de ser. O tempo se encarregará de lhes desfalecer o corpo. A morte parece infalível. É o caso da estrutura arruinada do mosteiro cisterciense de Santa Maria de Seiça, a primeira a ser fotografada pelo Gastão, e que já serviu como fábrica de descasque de arroz e que aguarda plano de recuperação.

 

Contudo, outras destas ruínas fotografadas ganharam nova vida. É o caso do Forte da Graça, ou de Lippe, em Elvas, obra setecentista da Guerra dos Sete Anos, um grande testemunho de fortaleza da Idade Moderna. Valeu-lhe ser galardoada pela UNESCO como Património da Humanidade, para lhe encontrarem uma reutilização futura.

 

Portugal pode deixar de existir como país, se continuarmos a perder a capacidade estética e ética de nos olharmos uns aos outros através das referências patrimoniais. Como as que constam nesta exposição, ou no pequeno livro da Fundação FMA e do blogue RuinArte do fotógrafo Gastão de Brito e Silva, já com largos milhares de registos. Não deixemos mais que da arte nasçam ruínas.

 

Mendo Castro Henriques

Mendo Castro Henriques

Professor na Universidade Católica Portuguesa

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