DALMÁCIA – 1
Cansados, foi quando deixámos de andar na lufa-lufa e nos sentámos por nossa própria conta num comprido banco de pedra estendido ao longo da muralha do velho porto de Dubrovnik. O Sol haveria de nos fazer companhia até ao meio-dia exacto quando todas as igrejas da cidade repicaram e, desaparecido, deixou cair a sombra em cima de nós. Foi então que mudámos de poiso. E o gato que estava deitado sobre um cartão que o dono pusera ali mesmo ao nosso lado, acompanhou-nos para o lugar que seria soalheiro por mais algum tempo. A certeza do caminho com que nos acompanhou, levou-me a duvidar se ele, o gato, veio mesmo connosco ou se fomos nós que o acompanhámos até ao lugar que ele tomava sempre que o Sol passava por cima da muralha e entrava na cidade. Conversa calada, não lho perguntei e ele não mo disse. Fiz-lhe mais uma festa a agradecer a companhia e ele disse que estava «mau» com um «i» lá pelo meio. Sotaques... Foi então que me lembrei da Simone de Oliveira e do seu «Sol de Inverno». Não fui capaz de cantarolar; esqueci-me da melodia que, por certo, a teria.
Aquela a que continuo a chamar «de beau voir, pas d'écouter»
https://www.youtube.com/watch?v=HsAbEjCh8oU
Acalmado o movimento de barcos a levar e a trazer turistas em passeios de périplo a Loktrum, a ilha verde, que nós fizéramos na véspera, pude então copiar James Joyce na sua epifania dos lugares mágicos. E o velho porto de Dubrovnik é mesmo mágico! Imaginei e quase vislumbrei os marinheiros de todas as gerações que por ali passaram, os comerciantes chegados de Alexandria ou a caminho de Veneza, os turcos às ordens do «magnífico» Suleimão que por ali passavam em busca do tributo anual de muitos milhares de moedas de oiro, o preço da paz que a Bósnia não foi capaz de negociar. Lembrei-me das gerações de banqueiros que por ali assentaram arraiais, dos humildes frades menores franciscanos que ainda por lá estão assim como dos seus vizinhos à distância de poucos quarteirões, os soberbos pregadores dominicanos. Mas lembrei-me também dos sábios professores jesuítas que já não cabem na cidade velha e fizeram dois colégios extra muros. Mais prosaicamente, lembrei-me das sucessivas vagas de políticos e de outros malandrins...
Olhando quase na vertical, vi bem lá em cima a fortaleza que Napoleão mandou construir no cimo dos penhascos bem íngremes a que hoje se chega de teleférico. Dali, puderam os franceses bombardear a cidade transformando o tiro curvo da artilharia em tiro tenso sem necessidade de fazerem cálculos de pontaria para acertarem nos alvos cá em baixo, à disposição. As tropas de Milosevic também. Napoleão ainda se aguentou na pilhagem durante oito anos; Milosevic, não[1].
Sem fome, é uma da tarde do dia 2 de Janeiro e o relógio aconselha a comer qualquer coisa num daqueles quiosques de comes e bebes na “Stradun”, a Rua Direita lá do sítio, para mais logo tomarmos o transporte para o aeroporto e o rumo de Lisboa. E como no avião só serviriam uma «sandocha», abalancei-me a umas «french fries» com mostarda de Dijon e mais não disse.
E que mais levo da Croácia? Logo direi...
Janeiro de 2017
Henrique Salles da Fonseca
[1] A agressão militar sérvio-montenegrina à Croácia decorreu de 1991 a 1995.