DA TOLERÂNCIA
Não é através do aumento da consciência dos deveres para com o outro que a tolerância ganha em legitimidade social, é através de uma cultura desqualificadora dos grandes projectos colectivos que afasta o moralismo autoritário, esvazia do seu caracter absoluto as querelas ideológicas, políticas e religiosas, virando, cada vez mais, os indivíduos para a sua própria realização pessoal. A tolerância de massas é uma virtude indolor, o seu crédito alimenta-se do refluxo das ideologias heróicas, do eclipse dos deveres de esclarecer, penetrar e converter os espíritos. Em sociedades onde a prioridade está no eu, cada um pode pensar e agir a seu bel prazer, desde que não incomode os outros, a nossa tolerância é pós-moralista, traduz menos um mandamento da razão do que uma indiferença em relação ao outro, menos um ideal dirigido para o outro do que um movimento de auto-absorção individualista, menos um dever categórico do que um direito subjectivo. Registemos, de novo, o paradoxo: é quando reina o culto do ego que levam a melhor os valores de tolerância, é quando desaparece a escola do dever que é consagrado o ideal do respeito pelas diferenças. O percurso da moral tem razões que a razão moral desconhece.
A tolerância reivindicada nos nossos dias não é associável ao relativismo ou ao cepticismo completo como teimam em repetir os bravateadores do «espírito indulgente». A cultura neo-individualista coincide com uma ligação cada vez mais sensível aos valores de liberdade privada, tudo o que afronta este princípio é maciçamente repelido. Desta forma, não se aceita a atitude das Testemunhas de Jeová que se recusam a vacinar os seus filhos; desta forma são consideradas intoleráveis as excisões rituais e os casamentos impostos. A tolerância pós moralista não significa derrocada dos valores e possibilidade de substituição de todas as crenças, não corresponde à «incapacidade de dizer sim ou não» outrora estigmatizada por Netzsche, nem à ausência de vontade hoje denunciada pelas cruzadas da República. O «diferencialismo» pós moderno tem limites, nem tudo é válido, não há apenas «interpretações» equivalentes: a consciência individualista é um misto de indiferença e de repugnância pela violência, de relativismo e de universalismo, de incerteza e de carácter absoluto dos direitos do homem, de abertura às diferenças «respeitáveis» e de rejeição das diferenças «inadmissíveis». O relativismo integral não passa de uma posição académica defendida nos panfletos e dissertações filosóficas: na realidade social, a flutuação das convicções marca o ritmo no ponto em que o núcleo mínimo da ética democrática cai em descrédito.
Gilles Lipovestsky
In “O Crepúsculo do Dever”, ed. D. Quixote, 4ª edição, Maio de 2010, pág. 171 e seg.