DA GULA E DA LÓGICA POÉTICA
Pedir ao poeta que cumpra rigorosamente as regras gramaticais e os ditames da lógica é o mesmo que exigir aos arquitetos e engenheiros que metam o Rossio na Betesga mas, na verdade, todos nós, os prosaicos, compreendemos essas liberdades poéticas.
Vai daí, a minha amiga Eli O (em sotaque britânico), querendo elogiar-me (o que senti e agradeci), disse, citando Manuel Gusmão, poeta meu desconhecido, que eu tenho «a esperança que não espera». Gostei mas fiquei a pensar…
… e pensei que a esperança é o sentimento de quem acredita na concretização de algo subjectivamente positivo no futuro, ou seja, de algo que só o tempo trará. E como o homem ainda não consegue manipular essa quarta dimensão, o tempo, não esperar pela esperança só pode resultar no seu contrário, o desespero. Mas, para além deste ambiente cartesiano, há outras dimensões em que a expressão pode tropeçar.
Assim, na perspectiva política, não dar tempo de amadurecimento à esperança significa precipitar os acontecimentos, ou seja, fazer a revolução. E o Estado revolucionário, o oposto ao Estado de Direito, cede sempre à vontade do «caudillo» da revolução, ao seu improviso ou capricho. Eis o fascismo na sua plenitude.
Num registo menos doutrinário, o da culinária, à «esperança que não espera» chama-se gula.
Março de 2024
Henrique Salles da Fonseca