CURTINHAS nº CXLVII
equívocos & vistas curtas
Bons tempos aqueles em que bastava um Banco (ou qualquer outra sociedade comercial) manter intacto o seu Capital Social (isto é, as entradas de capital que os seus sócios realizavam, ou se comprometiam a realizar) para fazer o que melhor lhe aprouvesse.
Representasse, apenas, uma ínfima parcela do seu Balanço, fosse manifestamente insuficiente para absorver as perdas prováveis nos riscos a que se expunha – tanto se dava. Importante, importante mesmo, era não perder o Capital Social por efeito de má fortuna (leia-se: prejuízos acumulados).
E foi à sombra deste cânone que a Banca portuguesa viveu os seus dias de ouro, com Balanços em expansão acelerada e Capitais Próprios a marcar passo, o que proporcionava invejáveis rentabilidades – e instilava a ideia de excelente gestão.
O Acordo Basileia II (2006) veio anunciar o fim desses tempos – e a crise financeira internacional (2007-2010?) enterrou-os de vez.
Hoje em dia os Bancos têm de dispor de Capitais Próprios suficientes para absorver, não só as perdas já incorridas, mas também as perdas prováveis, mesmo em conjunturas bastante adversas. O Capital Social, esse, pertence irremediavelmente ao passado – uma vez realizado, não interessa para mais nada.
Imagine, Leitor, um Banco como um veleiro: a dimensão do Balanço são as velas que, aproveitando o vento (os riscos a que o Banco se expõe), imprimem velocidade (lucros brutos); os Capitais Próprios são a quilha para lhe conferir estabilidade, mesmo com vento rijo (riscos elevados), mesmo no meio de tormentas (conjunturas especialmente adversas).
Actualmente, os Capitais Próprios de um Banco são vistos, antes do mais, como a garantia que os seus accionistas prestam a favor de quem tenha interesse directo legítimo na continuidade desse Banco (depositantes, obrigacionistas, outros credores).
E, para serem uma garantia que conforte capazmente, têm de estar investidos em activos facilmente liquidáveis e com valor realizável que não ofereça dúvidas.
A ideia, tão querida entre nós, de que o Capital Social é a primeira fonte de financiamento das actividades de um Banco não tem, assim, o menor fundamento – é um equívoco grave, mas, por cá, muito comum. Estamos todos a pagá-lo bem caro.
Voltando à CGD. Que necessita de maiores Capitais Próprios, é ponto assente. De quanto? Tudo dependerá: (i) das perdas já incorridas, mas que não estão ainda deduzidas aos Capitais Próprios (tarefa do Auditor Externo); (ii) das perdas prováveis a que se encontrar exposto o seu Balanço actual (tarefa do Supervisor); (iii) do modelo de negócio que vier a adoptar (tarefa do Accionista).
Os dois primeiros pontos são a herança do passado - o que está feito, está feito, não há volta a dar. O ponto verdadeiramente importante é, porém, o último: como enfrentar o futuro.
Ora, é precisamente aqui que entronca a tese segundo a qual “a missão da CGD é financiar a economia”.
Um equívoco mais, posto que a CGD tem outras missões para além de financiar: (i) é uma peça fundamental no nosso sistema de pagamentos (esta, aliás, a missão de longe mais importante); (ii) desempenha um papel muito relevante no incentivo ao aforro - quando emite instrumentos financeiros remunerados e resgatáveis à vista (Depósitos a Prazo).
Começando por aquela primeira missão. Tempos houve em que a CGD era “a Caixa Geral do Tesouro” – o que é dizer, a instituição em que o Tesouro depositava todos os seus haveres e através da qual fazia os seus pagamentos. Não mais.
Desde a década de ’80 que o Tesouro tem, ou pode ter, conta em qualquer Banco. Esta dispersão dos saldos do Tesouro impede que tais fundos sejam usados como um elemento estabilizador (e primeira defesa!) do mercado monetário interbancário em Portugal. Na ausência de um Banco de Tesouro (onde o IGCP se integraria), eis uma função que poderia muito bem ser confiada à CGD - onde, aliás, já esteve - com apreciáveis vantagens.
Os instrumentos financeiros resgatáveis têm, para os investidores/aforradores mais avessos ao risco (que são a grande maioría), uma dupla vantagem: para além de renderem, o emitente deve restituir na íntegra o capital investido, mesmo se liquidados antecipadamente.
É certo que Fundos de Tesouraria (Unidades de Participação) e Estado (Certificados de Aforro) também os emitem. Mas os Depósitos a Prazo, mesmo que rendam menos, oferecem: (i) uma segurança (a cobertura pelo Fundo de Garantia dos Depósitos, o facto de o Banco emitente dispor de Capitais Próprios que respondem pela dívida e ter acesso às facilidades de liquidez do Banco Central) que não está ao alcance das Unidades de Participação; (ii) uma flexibilidade (diversos prazos, resgate a qualquer momento) que os Certificados de Aforro, por serem Dívida Pública, não têm, nem podem ter (porque tal encareceria o respectivo custo do capital).
E quanto a financiar? Financiar o quê e como?
Nestes últimos 25 anos, a CGD pouco ou nada se distinguiu dos restantes Bancos Comerciais. Todos competiram por: (i) financiar o Estado; (ii) financiar a tesouraria corrente e alguns projectos de investimento de empresas; (iii) financiar a compra de habitação própria; (iv) financiar a compra, pelas famílias, de outros bens e de serviços. E, de quando em vez, também entravam no capital de empresas (lá tinha que ser).
O peso de cada uma destas, digamos, “linhas de negócio” ia variando ao sabor dos dias - e variava também de Banco para Banco. Mas, no essencial é um modelo de negócio centrado no financiamento da procura interna - cujos efeitos cedo (logo em 1999) começaram a ser visíveis: os desequilíbrios crescentes (e insustentáveis) da BTC têm origem nele.
A questão é esta: poderá a CGD prosseguir neste modelo de negócio? Não me refiro já aos efeitos nefastos na BTC. Tenho em mente, apenas, a sua solidez e estabilidade financeiras.
Um Banco financiar o seu próprio Estado deixou de ser bem visto: em conjunturas adversas (crises financeiras, etc.) a economia fica ainda mais fragilizada. Mas a CGD não está impedida de o fazer, desde que possa afectar à Dívida Pública em carteira Capitais Próprios que lhe permitam passar nos testes de stress (de EBA/BCE) sem comprometer a sua capacidade para continuar a financiar tudo o resto.
A CGD financiar o investimento empresarial? Certamente. Com duas ressalvas: (i) enquanto permanecerem no seu Balanço, estes empréstimos põem o sistema de pagamentos em contacto directo com riscos financeiros - o que é perigoso; (ii) o prazo médio dos seus depósitos é muito inferior aos prazos de financiamento mais adequados à generalidade dos projectos de investimento – e isso abala os alicerces da sua solidez financeira.
Tal como nos projectos de investimento, quem pretende comprar casa própria, não pede só dinheiro emprestado, pede também prazo para pagar (15 anos, ou mais). Ora, se estes empréstimos hipotecários forem mantidos no Balanço até serem integralmente pagos, a CGD não tem como se financiar nos mercados financeiros em prazos tão alargados.
Uma vez mais, é o desequilíbrio acentuado entre prazos de exigibilidade do Activo e prazos de exigibilidade do Passivo (no jargão técnico: mismatch) – e o risco de refinanciamento que lhe está associado - que poderá deitar tudo a perder ao primeiro sinal de crise.
Mas a hipoteca de imóveis não é uma garantia sólida que supre tudo isso? Sim e não. Vender um imóvel em execução de uma hipoteca, isoladamente, pode ser rápido e até por um preço satisfatório. Agora, vender de uma assentada muitos imóveis não é fácil, uma vez que, por cá, não existe um mercado imobiliário digno desse nome: o mais certo é os preços virem por aí abaixo - e o valor realizável do bem hipotecado não dar para cobrir o crédito em incumprimento.
A dura realidade, Leitor, é que as hipotecas (de casas e outras) não valem grande coisa em períodos de crise – e a CGD sabe isso melhor do que ninguém. Importa, pois, que o modelo de negócio escolhido a deixe bem preparada para enfrentar crises e conjunturas adversas.
Grande parte do crédito ao consumo tem por destino financiar a aquisição de bens e serviços importados. Por isso, não creio que seja a isto que a tese “financiar a economia” aluda. Acresce que, nesta linha de negócio, o risco de crédito é também extremamente sensível ao desemprego que acompanha as conjunturas recessivas – cujos efeitos negativos tende, aliás, a ampliar.
Todas estas quatro linhas de negócio acima resumidas têm em comum serem soluções de financiamento com endividamento. Para uma economia que se encontra há cerca de 15 anos em situação de sobreendividamento, é capaz de não ser muito avisado pretender relançar a CGD à custa de mais dívida do Estado, das Empresas e das Famílias.
Então, por que não orientar a CGD para a oferta de soluções de financiamento sem endividamento – como seja a subscrição de capital das empresas (Acções, Quotas)? Afinal, sempre ajudaria a recapitalizá-las, amortecendo-lhes o endividamento excessivo.
Por três razões principais: (i) em geral, Acções (e Quotas) não são aplicações elegíveis para os Capitais Próprios de um Banco (ver mais acima porquê); (ii) é um erro que se paga muito caro financiar com dívida (em larga medida, depósitos cujos prazos contratados raramente excedem 3 anos) posições de carteira que, por definição, não têm prazo fixado para o respectivo reembolso (como é o caso das Acções e das Quotas); (ii) se cada empréstimo bancário em Balanço torna o sistema de pagamentos (que deve ser mantido ao abrigo do mais ínfimo risco, recordo) vulnerável ao risco durante um prazo bem determinado, cada Acção (ou Quota) no Balanço mantém essa vulnerabilidade ad perpetuum.
Então, perguntará o Leitor, em vista de tudo isto, o que sobra?
(cont.)
Agosto de 2016