Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

A bem da Nação

CURTINHAS CXXXIX

 

Pirata.png

 

A ilha dos Piratas - III

 

  • Discorrer sobre os Offshores, como por aí se faz abundantemente, sem levar em linha de conta a importância actual dos movimentos transfronteiriços de capital, os obstáculos com que estes movimentos se deparam a todo o momento e os riscos financeiros que sobre eles impendem, é um rematado disparate.

 

  • Muitos que o fazem: (i) ou não têm a menor ideia de que o risco (e, em particular, os riscos financeiros) é algo inerente a todas as actividades económicas; (ii) ou, por razões ideológicas, aborrecem a livre movimentação de capitais (uma das quatro liberdades que dão forma às economias desenvolvidas).

 

  • Por falar em riscos financeiros, manda a verdade que se diga que a operação de back-to-back que serviu de exemplo expõe também o investidor (X) ao risco de crédito causado pelo Banco (Y). Se o Banco cair insolvente, o investidor pode nunca recuperar o seu depósito (em €), mas vai ter de pagar à massa falida, na íntegra, o empréstimo (em R$) que contraiu.

 

  • De facto, é muito raro que os depósitos bancários em Offshores estejam cobertos por Esquemas de Garantia financiados com dinheiros públicos - mesmo que os depósitos bancários no Onshore, tanto no país de origem do Banco Depositário, como no país onde o Offshore esteja localizado, gozem dessa cobertura.

 

[NOTA: Uma excepção que nos toca de perto é o Offshore da Madeira. Passou ao nosso preclaro legislador preceituar que o dinheiro ali depositado não tem o contribuinte português por fiador. Um dia vai correr mal.]

 

  • E é justamente por isto que os Bancos que prosperam nos Offshores são aqueles com uma reputação a toda a prova (valha isto o que valer) – o que leva quem usa Offshores a não ligar por aí além ao risco de crédito. Mas não têm sido poucas as surpresas.

 

  • Seja como for, é inegável que a possibilidade legal de constituir shell companies, a possibilidade legal de ocultar informação relevante e a recusa de cooperar no plano internacional criam o ambiente perfeito para esconder identidades – e não importa por que motivo.

 

  • Ora, “esconder identidades” não é, nem “originar capitais”, nem “rentabilizar capitais” – muito menos “reabilitar (branquear, lavar) capitais”.

 

  • As actividades ilícitas que estão na origem dos capitais que são encaminhados para Offshores só muito raramente têm lugar em Offshores. Acontecem, sim no Onshore - onde é suposto haver transparência, vigilância, cooperação e o firme propósito de combater o crime. Regra geral, os Offshores até são locais bastante tranquilos.

 

  • Aliás, os capitais ilícitos que afluem aos Offshores não ficam por lá, escondidos na toca – qual tesouro de pirata enterrado na areia. Quem se esconde, quem quer permanecer no anonimato, são os verdadeiros titulares (e os beneficiários últimos) desses capitais.

 

  • Os capitais, esses, procuram rentabilidades que só no Onshore A base económica dos Offshores, mesmo daqueles localizados em economias desenvolvidas, não é suficientemente robusta e diversificada para lhes proporcionar retornos interessantes. Recordo que não há Bolsas de Valores nos Offshores.

 

  • Começando pelo começo. Os capitais, seja qual for a sua origem, percorrem invariavelmente um ou outro dos seguintes dois caminhos para chegar a um Offshore: (i) ou são depositados num Banco aí estabelecido; (ii) ou são colocados à disposição de uma shell company aí constituída.

 

  • No primeiro caso: (i) ou têm como destino final o depósito bancário (depósitos por tradição mal remunerados); (ii) ou o depósito bancário é, apenas, o ponto de partida para a gestão fiduciária por entidades que podem nem sequer residir na vizinhança.

 

  • No segundo caso, por vezes, nem sequer chegam a sair do Onshore (circunstância muito mais frequente do que se pensa).

 

  • Temos, assim, que os capitais: (i) abalam do Onshore (quando abalam…) via Bancos (embora a mala cheia de notas ou barras de ouro ainda não tenha caído de todo em desuso); (ii) são acolhidos no Offshore, ou por Bancos, ou por shell companies com conta bancária aberta também no Onshore; (iii) regressam ao Onshore para novas contas bancárias - ou de lá nunca sairam.

 

  • É, então, no Onshore que os capitais ilícitos são, primeiro, reabilitados (isto é, acolhidos sem que a respectiva titularidade seja questionada, muito menos posta em causa) para, de seguida, serem rentabilizados através de aplicações financeiras perfeitamente legais.

 

  • Obviamente, se os Bancos no Onshore forem diligentes na identificação de quem seja o verdadeiro beneficiário dos fundos que movimentam (provenientes de Offshores ou do Onshore, tanto faz) a reabilitação de capitais ilícitos será extremamente dificultada – quase impossível.

 

  • Mas os Bancos, em geral, são, por natureza, discretos- e nada curiosos quando se trata de aumentar proveitos e/ou melhorar a posição de liquidez.

 

  • Isto, apesar de todos os Bancos: (i) estarem obrigados a respeitar o princípio KYC/Know Your Costumer; (ii) terem o dever de rejeitar a movimentação de fundos cujos remetentes e destinatários não estejam completamente identificados; (iii) estarem impedidos de negociar com contrapartes que recusem revelar a verdadeira identidade dos seus clientes.

 

  • Não é, pois, com a excomunhão dos Offshores que se elimina o branqueamento de capitais ilícitos. Defender tal: (i) ou é prova de ingenuidade; (ii) ou é manifesta ignorância; (iii) ou é táctica para distraír as atenções – a fim de que tudo no Onshore continue na mesma.

 

  • Num ambiente de plena licitude, a vantagem competitiva dos Offshores não é a opacidade, a defesa do anonimato ou a ausência de tributação directa, mas a contribuição que possam dar para a eficiência dos movimentos transfronteiriços de capitais e para a gestão dos riscos financeiros que essas operações envolvem.

 

  • Conseguem-no: (i) oferecendo segurança jurídica e fazendo cumprir as boas práticas internacionais – para que o risco país seja irrelevante; (ii) permitindo que qualquer empresa aí constituída escolha a sua moeda de relato (a moeda que utiliza na contabilidade) – para bem gerir o risco cambial e o risco de translato; (iii) aceitando que essas empresas optem pelo regime prudencial internacionalmente reconhecido que melhor lhes convenha – para facilitar o trabalho de consolidação contabilística (e diminuir gastos com o funcionamento).

 

  • E conseguem-no em competição directa com o Onshore, onde os Esquemas de Garantia dos Depósitos são a regra - apesar de não garantirem com dinheiros públicos o dinheiro depositado nos Bancos que por lá operem.

 

  • Porque a ausência de tributação directa é um argumento competitivo imbatível – diz-se. Assim é, de facto. Mas a generalização dos Acordos para Evitar a Dupla Tributação Internacional (a cooperação internacional no plano fiscal) retiraria muito peso a este argumento.

 

  • São, porém, os custos de contexto (a ideia de que o país deve ter um único regime prudencial que a todos sujeita; a propensão para legislar de forma desnecessariamente complicada, quase abstrusa; a obrigação de adoptar a moeda nacional como moeda de relato; as exigências mal calibradas em torno da informação fiscal a prestar; burocracias várias) que impedem que o Onshore compita de igual para igual - apesar de exibir o trunfo dos Esquemas de Garantia dos Depósitos.

 

  • E são também estes custos de contexto que enxotam para Offshores empresas que mantêm, entre elas, volumes de transacções comerciais muito elevados - estando localizadas em países diferentes, com moedas diferentes e sujeitas a leis diferentes.

 

  • A opacidade, a defesa do anonimato, a recusa em cooperar na perseguição aos movimentos de capitais ilícitos, combatem-se, não varrendo os Offshores da face da terra, mas vedando o acesso ao sistema de pagamentos internacionais a todos (Offshore ou Onshore) que façam disso modo de vida e modelo de negócio.

 

  • Mas daqui até à criminalização da evasão fiscal vai uma enorme distância.

 

  • Financiamento do terrorismo, do comércio privado de armas, do tráfico de drogas, de medicamentos e de pessoas, a contrafacção de notas, entre outros, são crimes onde quer que sejam praticados. E, por isso, o Direito Internacional os tipifica e pune. E, por isso, cada Estado tem autoridade própria para os perseguir, combater e punir.

 

  • A evasão fiscal, pelo contrário, varia consoante o entendimento que cada Estado fizer do que seja o dever fiscal. E só cada Estado é competente para fixar esse entendimento no interior das suas fronteiras. Não podem os restantes Estados substitui-lo no exercício dessa competência.

 

  • Por outro lado, não creio que nenhum Estado possa, com legitimidade, sentir-se prejudicado por outros Estados adoptarem regimes fiscais mais leves. Mas o Estado que seja vítima de evasão fiscal deve poder perseguir além fronteiras o dinheiro que lhe tenha sido ilegalmente subtraído. Para tal, a cooperação de todos os demais Estados, no Onshore e no Offshore, é imprescindível.

 

  • O problema está em como fazer: pela via administrativa? ou pela via judicial?

 

  • Defendo que seja sempre pela via judicial, em que o Estado que se sinta lesado recorre à cooperação internacional (seja do Estado onde se encontre o beneficiário último da evasão fiscal, seja dos Estados onde se encontre aplicado o produto da evasão fiscal) para recuperar os impostos que lhe tenham sido sonegadas. Uma cooperação que tem por base, unicamente, a execução de uma sentença judicial condenatória com trânsito em julgado.

 

  • Governos rapaces preferem, naturalmente, a via administrativa - e em defesa da sua posição argumentam que, sem essas receitas fiscais, é a prossecução do bem público (leia-se: investimento público, serviços públicos essenciais, transferências sociais) que fica irremediavelmente comprometida. E têm razão.

 

  • Mas a despesa pública inútil (em pessoal, em material, em serviços), o sobre-custo de tantos investimentos públicos, para não referir também os investimentos completamente improdutivos, têm exactamente o mesmo resultado.

 

E não se vê, da parte dos Governos, um esforço sério de contenção, nem se ouve, da parte da opinião pública, idênticos níveis de censura. Lá que é estranho, é.

 

 

(FIM)

ABRIL de 2016

Palhinha Machado.jpg

A. Palhinha Machado

 

5 comentários

Comentar post

Mais sobre mim

foto do autor

Sigam-me

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2024
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2023
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2022
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2021
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2020
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2019
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2018
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2017
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2016
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2015
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2014
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2013
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2012
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2011
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2010
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2009
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2008
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2007
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D
  235. 2006
  236. J
  237. F
  238. M
  239. A
  240. M
  241. J
  242. J
  243. A
  244. S
  245. O
  246. N
  247. D
  248. 2005
  249. J
  250. F
  251. M
  252. A
  253. M
  254. J
  255. J
  256. A
  257. S
  258. O
  259. N
  260. D
  261. 2004
  262. J
  263. F
  264. M
  265. A
  266. M
  267. J
  268. J
  269. A
  270. S
  271. O
  272. N
  273. D