CRAVOS MURCHOS – 3
Como ia dizendo, «uma das mentiras que a propaganda propala é a relativa à guerra do Ultramar pois a verdade histórica é a de que Portugal ganhou as guerras em Angola e em Moçambique e perdeu a da Guiné. E não será por muito repetirem a mentira de que “Portugal perdeu a guerra do Ultramar” que isso passa a ser verdade. É mentira!»
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Assentei praça em Abril de 1970 na Escola Prática de Infantaria, em Mafra e para não me sentir isolado, deram-me 799 companheiros, desses a que na tropa se chama camaradas. Dentre eles, houve cerca de 150 que cumpriram o sentido etimológico do termo, «o que usa a mesma camarata». Não tive, pois, razões para me sentir anacoreta.
Cada Pelotão era comandado por um Aspirante tirocinante da Academia Militar. O meu Comandante de então é hoje um respeitado e medalhado Coronel de Infantaria reformado.
Nessa trintena de homens, muitos éramos licenciados com destaque para dois ou três médicos (é sempre bom ter dessa gente à mão de semear), dois ou três engenheiros, três ou quatro economistas, um ou dois juristas, sete ou oito contabilistas e cerca de uma dezena que não tinha concluído as respectivas formaturas. E é destes últimos que colhe referir serem eles quase todos retornados da emigração europeia com um «semblante» algo silencioso que de princípio não deu para percebermos completamente. Até que o rolar do tempo e caídas as máscaras trazidas da rua paisana, a solidariedade militar (estarmos quase sempre em contacto uns com os outros e passarmos pelas mesmas peripécias) nos fez abrir a compreensão para o que cada um era na realidade. E salvo uma ou outra excepção, todos eles orbitavam muito próximo do PCP, então clandestino. E se não eram comunistas filiados, dava para nós, os outros, lhes estranharmos os silêncios às nossas conversas sobre a necessidade de mudanças políticas, de aceleração do desenvolvimento, de abertura do Regime no sentido da democracia ocidental. Tinham medo de falar e o máximo que deixavam entrever não passava de meias palavras, hesitações, absolutamente nada que os pudesse incriminar. E o que se passava no nosso Pelotão passava-se muito provavelmente nos outros que constituíam a nossa Companhia e quiçá nos outros Pelotões das outras Companhias. Admitida a extrapolação, eis um Batalhão com uma grande parcela de retornados do exílio que por artes de berliques e berloques decidiram regressar a Portugal todos ao mesmo tempo para se integrarem no Exército e irem dar luta para onde os mandassem. Patriotismo comovente...
Nós, os outros, não vimos nada disso com a clareza que hoje, passados mais de 40 anos, o cenário apresenta mas dá para estranhar que a 2ª Repartição do Quartel General (a das Informações) não tenha logo na altura detectado esse tão volumoso e síncrono «voluntarismo». Estranha ineficácia para não dizer opacidade.
Ouvi há poucos dias num dos canais da rádio pública um reformado que recebe a pensão de General dando uma entrevista em que relatou o que se passou com ele na Guiné: tendo morrido perto de si um inimigo, ele ficou chocado e, uma vez regressado ao quartel, reuniu com os seus Quadros para debaterem a razão de ser da luta que vinham travando; a conclusão a que chegaram foi a de que eles, militares portugueses, eram os agressores de nacionalistas que estavam a dar a vida por valores superiores; decidiram a partir de então deixar de os combater.
Para esse grupo de gente fardada, os valores portugueses, afinal, não eram superiores.
Felizmente, em Angola e Moçambique havia mesmo militares e não apenas gente fardada.
Lisboa, Maio de 2014