CONVERSAS SOLTAS - 3
Personagens:
- Rei D. Manuel II
- Presidente Manuel Teixeira Gomes
Cenário – Sala de música do Palácio da Ajuda, Lisboa
No meio da cena, o violoncelo do Rei D. Luís com uma poltrona de cada lado
* * *
R – Senhor Presidente, seja bem vindo à casa dos meus avós.
MTG – Obrigado, Majestade! A casa que, durante muitos anos, foi a «Real Barraca», de madeira.
R – Dá para imaginar o susto que o meu tetravô, o Rei D. José, apanhou no Paço da Ribeira com tudo a desmoronar-se e com o tsunami que alagou de enxurrada a baixa de Lisboa. Também eu nunca mais voltaria a entrar numa casa de pedra e cal.
MTG – Mas aqui estamos nós no cimo da Calçada da Ajuda, a recato de tsunamis e junto do violoncelo do Senhor D. Luís. Chegou alguma vez a ouvi-lo tocar?
R – Não. Eu nasci cerca de um mês depois da sua morte mas a minha avó dizia que em Portugal havia quem tocasse melhor violoncelo do que ele e que em Itália, então, muito melhor.
MTG – Ah, sim, a Côrte de Sabóia devia ser um centro cultural de primeira grandeza.
R – Era isso que a minha avó dizia. E foi lá que cumpriu o exílio. Exilou-se no seu próprio país. Teve mais sorte que nós.
MTG – E, contudo, ambos tivemos exílios dignos. Vossa Majestade teve um ambiente acolhedor e eu tive o ambiente que eu próprio escolhi.
R – Ainda hoje estou convencido de que o ambiente acolhedor que nos rodeou, à minha mãe e a mim, se ficou muito a dever a si, Senhor Presidente, enquanto Embaixador em Inglaterra.
MTG – A minha preocupação era a de que ninguém importunasse Vossas Majestades. A República nunca me deu ordens para hostilizar a Família Real exilada. Foi-me fácil actuar pela positiva. Na maior parte das vezes, bastou-me não fazer nada.
R – Mas houve ocasiões em que teve que agir.
MTG – Admirei muito o oferecimento de Vossa Majestade para integrar o Corpo Expedicionário Português na Flandres. Apoiei a ideia mas Lisboa não deu seguimento ao meu apoio e recusou a ideia. Embaixador não se enfurece mas lastimei-me à Raínha Alexandra. Terá sido ideia dela a integração de Vossa Majestade como Oficial da Cruz Vermelha britânica.
R – Adivinhei que tinha havido alguma actuação do então Embaixador de Portugal junto de alguém que nunca identificara até agora.
MTG – Soube então que Vossa Majestade ficou zangado por não ter sido aceite a sua generosidade mas, perante a recusa, não consegui fazer grande coisa.
R – Mais do que zangado, fiquei triste. De princípio, fiquei desiludido com a nomeação inglesa para a Cruz Vermelha mas, passados uns dias, pensando mais serenamente, concluí que só podia ter sido obra do Senhor Embaixador. E foi esse o sentido do meu super-discrteto cumprimento em Ascot quando o Senhor, à distância, tirou o chapéu e eu fingi dizer que sim à minha mãe que, a meu lado, nada dissera. Ela percebeu tudo e limitou-se a dizer «Vaut mieux comme ça», discretamente e à distância. Espero que tenha percebido o meu agradecimento.
MTG – Sim, percebi e foi essa afabilidade que me deu alguma tranquilidade no desempenho das minhas funções. E foi também com entusiasmo que anunciei a iniciativa de Vossa Majestade de oferecer a sala de operações ortopédicas ao Hospital Português em Paris. Quando me chumbaram a ideia de colocar uma placa a referir que fora Vossa Majestade que oferecera a sala, tive que puxar pela cabeça e acabar por mandar escrever aquela ignomínia que lá foi colocada «Oferta de um português em Londres». Peço que me desculpe.
R – É claro que desculpo! Na altura, achei mal mas, face às circunstâncias, não vejo hoje que melhor solução houvesse. Sobretudo com o jacobino que então representava Portugal em França. Quem era ele?
MTG – Já não me lembro mas não era por certo alguém que gostássemos de ter nestas nossas conversas.
R – Claro que não! É isso que admiro em si, Senhor Presidente: o Senhor não é jacobino e tem uma concepção serena da República, deseja para Portugal o mesmo que eu. Como tudo poderia ter sido diferente se nos tivéssemos conhecido no início do meu reinado…
MTG – Como se viu, também eu não fui capaz de fazer grande «coisa». A insubordinação que vigorava entre as elites nos finais da Monarquia era a mesma que me levou ao desespero como Presidente da República. Só uma mão pesada que se abatesse sobre essa balbúrdia poderia resolver o problema mas nem Vossa Majestade nem eu eramos filosoficamente capazes disso. As elites portuguesas encarregam-se ciclicamente de fazer esboroar as intenções inocentes dos democratas liberais.
R – Não merecem a liberdade que lhes demos a servir. E que me conta do seu exílio?
MTG – Contarei com o maior gosto numa próxima oportunidade porque o pessoal da limpeza está a entrar ao serviço e não convém que nos confundam com alguma nuvem de pó.
R – Muito bem, o nosso próximo encontro vai ser em Bougie. A nós, o Governo da Argélia não exige Passaportes nem Vistos.
Outubro de 2020
Henrique Salles da Fonseca