CONVERSAS DE ALDEIA – 5
- Oh Ti João! O Senhor é cá da Fonte da Telha?
- Não, sou da Caparica mas vim para cá com quatro meses.
Esta conversa passou-se quando o Ti João já andava pelos 80 e tal anos. Criado na praia à volta das palhotas e desde a infância entrado nas artes da pesca, era mestre de redes (era ele que de início as fabricava e que, quando elas passaram a ser compradas feitas, as remendava e mantinha operacionais) desde que os filhos tinham assumido a liderança da pesca propriamente dita. Mas andara toda a vida ao mar nos barcos que, entretanto, conseguira comprar – dois, sendo um para a arte de Verão e outro para a de Inverno.
Analfabeto, casou com uma prima também ela completamente analfabeto e como ele criada ali na praia à volta das palhotas. O primeiro filho nasceu quando ela tinha 14 anos e ele 15. Depois desse, vingaram mais dois.
Esta, a do Ti João, a que é considerada a primeira geração da terra, a filha dos forasteiros fundadores. Foram eles que confirmaram o assentamento, transformaram as palhotas em casas, da vereda fizeram uma escada, puseram uma telha na fonte, escavaram a rampa, definiram a «rua» e… conseguiram mandar vir uma professora para ensinar a filharada a ler, escrever e contar.
E se a professora fez a diferença fundamental entre a geração do Ti João e a seguinte, a da filharada, a aldeia começou a ser visitada por turistas que se aventuravam pela embrionária rampa abaixo e acima.
Então, a «Taberna do Faustino» começou a não dar vazão ao serviço. E o Ti João apoiou a mulher no levantamento duma «coisa» que de início apenas pretendia ser uma sombra onde se pudessem dessedentar os sequiosos. E lá se fez a sombra com os barrotes da Mata dos Medos entrelaçados com os molhes de palha das dunas para fazer sombra e tapar da chuva, lá se ergueram as «paredes» de caniço que mais tarde foram de «pau a pique», chão de areia só muito mais tarde consolidada por terra (vinda sabe Deus donde) que pés calcantes bateram… Mas esta era actividade acessória, a principal era a pesca.
Do alto da falésia vinha a mão de obra para empurrar os barcos até ao mar, puxá-los na volta, remar, escolher o peixe, metê-lo nas caixas e alinhar tudo na lota que passou a ser feita na praia em vez de ter que se calcorrear tudo até à Caparica. Na aldeia moravam os empreendedores e suas famílias, uma dezena de armações que davam trabalho a duas centenas de charnequeiros (habitantes na zona da charneca, hoje a tão simpática e cada vez mais cosmopolita Charneca da Caparica).
Trabalho anual com uma arte de Verão, a da xávega, outra de Inverno, a das redes de emalhar, tudo foi evoluindo e a motorização veio substituir muita mão de obra entretanto a caminho da reforma. E a fibra de vidro substituiu a madeira e os calafates, as redes que se rompiam deixaram de ser arranjadas e foram substituídas por novas, só o espírito empreendedor se manteve, agora transbordando a pesca e agarrando o turismo com a dinâmica dos fundadores.
E a vida continua…
Julho de 2019
Henrique Salles da Fonseca