CONVERSAS DE ALDEIA – 4
A melhor maneira de chagar à aldeia era pelo mar mas a praia era a via mais usada. A vereda pela falésia era muito íngreme e as mulas tinham que a descer com as cargas à frente para poderem puxar para trás e não vir tudo de roldão por ali a baixo. Mas o Faustino da taberna não queria nada com as mulas e contratava os miúdos para descerem os barris que os fornecedores deixavam lá no cimo. Só que, se a descida dos barris cheios podia ser uma festa, subi-los vazios era um suplício e vá de pensar noutra solução. Foi assim que se começou a procurar modo de descer e subir a falésia em diagonal em vez de na quase vertical. Foi assim que nasceu a rampa, que a antiga vereda íngreme foi transformada em escada e em que a fonte de água doce ali logo à ilharga foi aprimorada com uma «bica» que, à falta de melhor, foi uma telha que de algures sobrara - a fonte da telha.
Dirá quem me lê que a água doce foi a razão determinante para o assentamento da aldeia no local em que se encontra ao que respondo que a água doce surge ao longo de toda a arriba fóssil proveniente dos lençóis freáticos que ela, arriba, corta pelo que, não fora a calmaria do mar e o assentamento poderia ter acontecido em qualquer outro ponto da praia.
E, apesar da rampa (de início estreita e agreste), a «rua» principal da aldeia foi naturalmente orientada em paralelo ao mar, direita à Caparica e não ao topo da falésia. Com toda a naturalidade, foi ao longo dessa «rua» que cada família pioneira foi construindo cada palhota. Ponto central, a «Taberna do Faustino» (established since 1942) à frente da qual acabou por se fazer um espaço que logo foi baptizado de «Largo dos Pescadores». Até hoje, tanto o largo quanto a taberna. A diferença é que hoje o largo está empedrado e tem uma construção central que há quem julgue ser um coreto (mas não, é a sede da Associação das Festas dos Santos) e a taberna perdeu a rusticidade primitiva sendo que actualmente anima as hostes locais e forasteiras com sessões de karaoke. E tem uns gelados magníficos. Creio que não vende vinho, sequer. Mas, verdade, verdadinha, nunca perguntei.
Outra diferença em relação aos tempos primitivos: a antiga estrada para a Caparica (ao longo da praia e no sopé da falésia) perde-se logo ali à frente numa picada florestal que, à boa maneira pública, parece ser intransitável. Dizem. Nunca lá fui.
Até que as palhotas de telhados feitos com a palha da praia entrelaçada em molhos muito apertados que garantiam protecção contra a chuva e paredes de caniço se começaram a pouco e pouco a transformar em casas. Começou a técnica do «pau a pique», lá foi aparecendo um tijolo ou outro, sempre à custa de muito trabalho e grande sentido de pioneirosmo. Telhado de telha (passe o pleonasmo) foi coisa relativamente recente, lá pelos anos 50 e tal…
Tudo feito por cada um, com total sentido de propriedade.
Está o Leitor a perceber por que é que os vermelhos do dogma não entram aqui?
Não entraram esses mas entraram aqueles de quem politicamente menos se esperava, os do camartelo que só a muito custo foram impedidos de levar tudo pela frente. Até ver, sobreviveram os pescadores mas já ninguém confia nos da política.
Ou será que é a democracia que não gosta de gente independente, de espírito pioneiro, de trabalho, não grevista e dona do seu próprio património desde há praticamente um século?
Julho de 2019
Henrique Salles da Fonseca