CONSOLAÇÃO
«...batendo as asas pela noite calada...
vêm em bandos, com pés de veludo...»
A Caixa Geral de Depósitos (CGD) está a enviar aos seus clientes mais modestos uma circular que deveria fazer corar de vergonha os administradores - principescamente pagos - daquela instituição bancária.
A carta da CGD começa, como mandam as boas regras de marketing, por reafirmar o empenho do Banco em oferecer aos seus clientes as melhores condições de preço qualidade em toda a gama de prestação de serviços, incluindo no que respeita a despesas de manutenção nas contas à ordem.
As palavras de circunstância não chegam sequer a suscitar qualquer tipo de ilusões, dado que após novo parágrafo sobre racionalização e eficiência da gestão de contas, o estimado/a cliente é confrontado com a informação de que, para continuar a usufruir da isenção da comissão de despesas de manutenção, terá de ter em cada trimestre um saldo médio superior a EUR1000, ter crédito de vencimento ou ter aplicações financeiras associadas à respectiva conta.
Ora sucede que muitas contas da CGD, designadamente de pensionistas e reformados, são abertas por imposição legal. É o caso de um reformado por invalidez e quase septuagenário, que sobrevive com uma pensão de EUR 243,45 - que para ter direito ao piedoso subsídio diário de EUR 7,57 (sete euros e cinquenta e sete cêntimos!) foi forçado a abrir conta na CGD por determinação expressa da Segurança Social para receber a reforma.
Como se compreende, casos como este - e muitos são os portugueses que vivem abaixo ou no limiar da pobreza - não podem, de todo, preencher os requisitos impostos pela CGD e tão pouco dar-se ao luxo de pagar despesas de manutenção de uma conta que foram constrangidos a abrir para acolher a sua miséria.
O mais escandaloso é que seja justamente uma instituição bancária que ano após ano apresenta lucros fabulosos e que aposenta os seus administradores, mesmo quando efémeros, com «obscenas» pensões (para citar Bagão Félix), a vir exigir a quem mal consegue sobreviver que contribua para engordar os seus lautos proventos.
É sem dúvida uma situação ridícula e vergonhosa, como lhe chama o nosso leitor, mas as palavras sabem a pouco quando se trata de denunciar tamanha indignidade.
Esta é a face brutal do capitalismo selvagem que nos servem sob a capa da democracia, em que até a esmola paga taxa. Sem respeito pela dignidade humana e sem qualquer resquício de decência, com o único objectivo de acumular mais e mais lucros, eis os administradores de sucesso.
Medita e divulga... Mas divulga mesmo por favor... Cidadania é fazê-lo, é demonstrar esta pouca vergonha que nos atira para a miserabilidade social.
Este tipo de comentário não aparece nos jornais, tv's e rádios... Porque será???
Eu já fiz a minha parte. Faz a tua.»
Sem comentário pessoal, lembrei-me apenas do soneto ”O dia em que nasci” de Camões, mas também da «Consolação às Tribulações de Israel» do nosso judeu Samuel Usque, de que li partes outrora e que agora transcrevo da Internet. Servem apenas para nos deslumbrarmos, consolando-nos com o paralelo que podemos estabelecer entre o outrora e o agora, este cada vez mais prosaico. E não menos vil.
Leiamos o poema-canto da personagem Icabo:
Ó mundo, mundo,
Já que tuas racionais criaturas
Não consentes se doam de minhas tribulações e lazeiras,
Ne nas insensíveis
Influirão os céus algum modo secreto de piedade,
Dá licença aos rios
Que d’altas montanhas com espantoso rumor
Vêm quebrar suas escumosas águas em baixo,
Que detendo o seu arrebatado passo,
Com manso e lamentoso ruído
Acompanhem o contínuo curso de minhas lágrimas,
E em seu correr cansado,
Mostrem novo sentimento
De minhas longas misérias!
E vós outros,
Príncipes de todos eles,
Nilo, Ganges, Eufrates, Tigre,
Que, desatando-vos do paraíso terrestre,
Desenfreados vindes abrevar
Os sequiosos Egípcios,
Os moles e cheiros Índios
E, torcendo o passo,
Escondendo-vos nas áreas por muitos dias,
Saís depois a mostrar-vos
Aos bárbaros e queimados Guinéus
E subindo e descendo
Por ásperos e montanhosos desertos
Ides também saudar
Os guerreiros e cruéis Tártaros pois lá vos comunicais
Co aquele tão desejado mensageiro
Que em carro e cavalos de fogo arrebatado
Foi levado aos céus,
Rogo-vos que aqui manso me digais este segredo:
Quando cansarão meus males e fadigas,
Minhas injúrias e ofensas,
Minhas saudades e misérias,
As feridas n’alma e minhas mágoas,
As bem-aventuranças em sonhos,
As desaventuras certas, os males presentes
E esperanças longas e tão cansadas?!
E quando terá paz tanta guerra
Contra um fraco sujeito,
Temor, suspeita, receios
De minhas entranhas?!
Até quando gemerei, suspirarei, matarei a sede
Com as lágrimas de meus olhos?!
(in «Consolação às tribulações de Israel», por Samuel Usque)
Leiamos Camões:
O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.
A luz lhe falte, O Sol se [lhe] escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!
Não nos espantemos, pois.