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A bem da Nação

CATURRICES XLVI

Banca portuguesa.png

 

A BANCA PORTUGUESA NO QUADRO DO ACORDO BASILEIA-2

 

(…) Vem isto a propósito da Banca portuguesa - e dos efeitos que nela, previsívelmente, terá este novo quadro de relações interbancárias que o processo negocial em Basileia começou a desenhar.

 

Portugal integra, desde 1999, uma união monetária onde o seu sistema financeiro pouco pesa - e não são muitos os Bancos de raíz portuguesa com dimensão suficiente para acederem directamente às operações de "open market" que o Banco Central Europeu leva a efeito. Por isso, as linhas interbancárias concedidas por Bancos estrangeiros têm vindo a ganhar uma importância cada vez maior no “funding” dos Bancos portugueses.

 

Sendo o mercado de capitais português, como é, incipiente, não surpreende que as carteiras dos Bancos sejam constituídas, maioritáriamente, por aplicações financeiras sem natureza mobiliária, cujos devedores não têm visibilidade nos mercadores financeiros. Em quase todos os sectores da economia portuguesa, as empresas não dispõem de outras fontes de financiamento que não sejam o crédito bancário e o crédito dos fornecedores - este, em grande parte, financiado também pela Banca. Por força disto, o sistema bancário português retém, quase por inteiro, e em muito maior proporção do que se verifica em economias financeiramente mais evoluídas, os riscos inerentes ao ciclo económico - riscos estes que são não-seguráveis, pouco diversificáveis e insusceptíveis de cobertura. Acresce que a qualidade das demonstrações financeiras divulgadas pelas empresas portuguesas, e que vão instruir as decisões quanto ao crédito bancário, é, regra geral, fraca - e raras serão aquelas que passariam no crivo dos Princípios Contabilísticos Geralmente Aceites pelo IASC (International Accounting Standards Committee). Em resumo, a parcela maior das carteiras dos Bancos portugueses: (i) é constituída por instrumentos financeiros cujo risco de crédito não se encontra ainda estatísticamente medido; (ii) tem por contraparte entidades com reduzida expressão financeira, que não foram, nem virão a ser jamais, objecto de notação por agências de “rating” independentes; (iii) está alicerçada em informações financeiras cuja qualidade é difícil de comprovar; e (iv) concentra uma fracção desproporcionadamente grande dos riscos decorrentes da actividade económica. Neste contexto, não vai ser tarefa fácil, para os Bancos portugueses, demonstrar que possuem um capital adequado - que dispõem do capital que baste para atender às perdas prováveis a que o risco implícito nas suas carteiras os expõe.

 

Com a adesão à UME (União Monetária Europeia), o encargo de financiar o saldo da Balança de Transacções Correntes passou do Banco Central para os Bancos. Ora, como os deficites das transacções correntes têm vindo a situar-se, ano após ano, em níveis preocupantes, o endividamento líquido dos Bancos portugueses junto do exterior não podia deixar de crescer - e é já enorme, qualquer que seja o termo de comparação que se utilize: PIB, Activo Líquido Total do sistema bancário (com exclusão do Banco Central), etc. Forçoso é concluir, portanto, que esta dependência do sistema bancário português, face aos mercados financeiros internacionais, designadamente o mercado interbancário secundário da zona-euro, tenderá a aumentar. A ritmo mais lento, dado que a sua evolução no passado recente parece ser insustentável - mas a aumentar. O que é dizer que a Dívida Bancária ao exterior, medida no PIB, não deverá baixar nos próximos anos, muito pelo contrário - ainda que a economia portuguesa entre em recessão. Consequentemente, o sistema bancário português, no futuro previsível, será, não menos, mas ainda mais vulnerável aos critérios de decisão, e às idiossincrasias, da Banca estrangeira - e, em especial, daqueles Bancos que, pela sua projecção nos mercados financeiros internacionais, terão toda a vantagem em passar a determinar o capital em risco através do método IRB avançado.

 

Parece prudente admitir, portanto, que os Bancos estrangeiros, afinal os verdadeiros financiadores de uma fracção importante da economia portuguesa, irão avaliar com crescente cuidado o risco de liquidez a que as suas linhas interbancárias os expõem - tornando, assim, o 3º pilar do Acordo Basileia 2 (a disciplina de mercado) numa realidade onde os Bancos portugueses terão de aprender a viver. Para tal, é de esperar que os grandes Bancos estrangeiros, muito proximamente, venham a recorrer a modelos IRB avançados, mesmo que esses modelos não tenham sido ainda reconhecidos pelas respectivas autoridades de supervisão. E, tal como aconteceu com os princípios que inspiraram o Acordo de 1988, é razoável esperar que este paradigma da "medição sistemática do risco de crédito e das perdas prováveis, através de modelos estatísticamente aferíveis" venha a ser progressivamente adoptado pela generalidade dos Bancos, como prova provada - perante as suas autoridades de supervisão, seguramente; mas, acima de tudo, perante os seus pares e perante os mercados financeiros - de prudente e sã gestão. A prevalência deste paradigma como prova da qualidade da gestão, parece, pois, inevitável, ainda que o Acordo Basileia-2 nunca venha a ter lugar - e vem estabelecer, sem dúvida, um ponto de viragem na própria concepção da actividade bancária e, em particular, do relacionamento interbancário.

 

A disciplina do mercado (3º pilar) não permitirá que os Bancos portugueses se coloquem à margem das mudanças que estão já em curso. Mais do que a legítima preocupação de projectarem a imagem de uma gestão prudente e de enfrentarem com êxito o escrutínio dos pares, é a incontornável dependência das linhas interbancárias com origem no estrangeiro que irá impor-lhes, se é que não impõe já, a necessidade de demonstrarem permanentemente a qualidade das suas carteiras de crédito e dos processos que seguem na avaliação, na detecção e na gestão do risco (riscos financeiros e riscos operacionais). Como fazer, então, quando as carteiras de crédito bancário estão formadas, em grande maioría, por contrapartes sem "rating" independente, por instrumentos financeiros cujo risco nunca foi estatísticamente medido e por informações financeiras opacas? Ou os Bancos portugueses são capazes de demonstrar à evidência a qualidade das suas carteiras - ou serão os Bancos estrangeiros financiadores a estimarem o capital que cada um tem em risco, e a decidirem em conformidade.

 

Uma outra tendência que as negociações em curso têm feito germinar, é aquela que reflecte a mudança nas atitudes dos mutuantes de último recurso. Com uma contribuição pouco menos que marginal para o risco sistémico na zona-euro, o sistema bancário português, paradoxalmente, pode ser visto pelos mercados financeiros como representando um risco de liquidez acrescido. E a razão é simples: até onde estaria o SEBC (Sistema Europeu de Bancos Centrais) na disposição de se envolver para, como mutuante de último recurso, resgatar um Banco português em crise de liquidez?

 

Neste novo contexto, se não conseguirem oferecer a transparência que os mercados financeiros internacionais lhes exijam, se não conseguirem demonstrar a qualidade das suas carteiras e se não exibirem resiliência bastante para que as dúvidas a propósito da actuação do SEBC sejam meramente retóricas, os Bancos portugueses deverão estar preparados para suportarem prémios de risco cada vez maiores no custo efectivo do seu "funding" - e as consequências nefastas da selecção adversa a que ficarão remetidos.

 

A disciplina de mercado (3º pilar), na conjuntura económica actual, é, de certeza, incómoda para os Bancos portugueses. Mais do que a dimensão dos seus capitais próprios, a partir de agora, com a disciplina de mercado (3º pilar), o que importará para um Banco é a relação (também designada por "adequação do capital") entre esses capitais próprios e o capital em risco apurado segundo um método reconhecido, consistente e credível - e, em última análise, a qualidade dos seus diferentes Livros. Mas, como demonstrar cabalmente a qualidade de uma carteira de crédito bancário, quando não existem estatísticas de base nacional e sectorial sobre: (i) taxas de incumprimento; (ii) perdas incorridas; (iii) taxas de recuperação de capitais em processo de liquidação; (iv) degradação da solvência; ou (v) evolução do risco de crédito ao longo do ciclo económico? Como fazê-lo, quando é fácil comprovar que não está ao alcance de nenhum Banco, isoladamente, construir as estatísticas de que necessita - por muito grande que seja a dimensão da sua carteira?

 

Eis um grande desafio que a Banca portuguesa, no seu conjunto, e cada Banco, individualmente, têm de saber superar para bem da competitividade da economia portuguesa.

 

Palhinha Machado-JAN17.jpg

A. Palhinha Machado

 

Publicado em Economia Pura-IV-nº 45 (abril 2002)

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