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A bem da Nação

CATURRICES XLI

depósitos bancários.jpg

 

DEPOSITA-SE O QUÊ, NUM BANCO?

 

  • Reza a lenda que, há muitos, muitos anos já, um velho, mais velho que sábio, respondia a qualquer pergunta que lhe fizessem, a todas as questões com que o confrontassem, sempre com a mesma sentença, repetida até à exaustão: “Quem não fala como pensa, acaba a pensar como fala”.

 

  • Tanta circunspecção, tamanha obsessão, só poderiam ser sinal de inspiração divina – e a sua fama espalhava-se, espalhava-se…até hoje.

 

  • Muitas vezes me vem à ideia a sentença do velho da lenda. Então, quando ouço falar de “depósitos bancários”, é logo.

 

  • Tempos houve, no alvor dos Fugger, dos Medici, dos Gonzaga, que o dinheiro (e outras preciosidades que não vêm agora ao caso) era confiado à guarda de quem tinha fama, por junto, de poderoso e de probo. Gente d’algo com banca, banqueiros, como se dizia.

 

  • Poder, para manter em segurança os valores recebidos; probidade, para que ninguém duvidasse de que teria de volta, intactos, os objectos que entregasse em depósito. Um serviço que implicava grandes custos para ser prestado – e que se fazia pagar caro por quem o quisesse aproveitar.

 

  • Depósito, no pleno sentido da palavra – como se depositavam então, e se depositam ainda hoje, cereais, armas, peles, alimentos e tantas outras mercadorias.

 

  • Mas o dinheiro desses tempos nada tem a ver com o dinheiro de hoje. Então, era um objecto palpável – peças (moedas, barras) de metal precioso (ouro e prata) que serviam, antes do mais:

(i) para salvar o corpo (pagamento de extorsões e de resgates);

(ii) para salvar a alma (doações a igrejas, mosteiros e conventos);

(iii) para comprar fidelidades (bem não menos escasso que o dinheiro nas barafundas políticas dessas épocas).

Era este o dinheiro dos banqueiros. O dinheiro usado nas trocas mercantis correntes era, por esses dias, coisa diferente.

 

  • E ser banqueiro, nesses recuados tempos, não era modo de vida que se abraçasse de ânimo leve. Não restituisse ele, prontamente, o que lhe fora entregue em confiança, e sofreria na própria carne - o mais provável era, zut!, perder (literalmente) a cabeça.

 

  • Mesmo os banqueiros mais poderosos, se desonestos, não escapavam por muito tempo a essa justiça imanente: uma punhalada pelas costas, umas gotas de veneno – e estava reposta a ordem no agitado mundo dos negócios de então.

 

  • Justiça cada vez mais necessária, porque cedo os banqueiros descobriram que podiam usar em proveito próprio o dinheiro que recebiam em depósito. Importante, importante mesmo, para manterem a cabeça no lugar e poderem continuar a contar moedas, era não falharem nenhuma restituição.

 

  • Tanto mais que, se tudo fosse feito a preceito, os depositantes nunca iriam distinguir o dinheiro que lhes era restituído do dinheiro que tinham depositado. (É isso, Leitor. Já nesses tempos distantes o dinheiro era coisa fungível - o que dava aos banqueiros grande satisfação). Mas não poucas vezes houve quem trocasse as mãos, perdesse o controlo do jogo – e, com isso, a vida.

 

  • Ora é ainda como depósito de coisa fungível que, segundo parece, o BdP continua a ver os “depósitos bancários”: um serviço (de guarda de dinheiro) que os Bancos prestam aos seus clientes e pelo qual eles, Bancos, são credores de uma remuneração. Pois não estamos a falar de “depósitos”? Não é a palavra dita ou escrita que desenha a realidade e comanda o pensamento?

 

  • No seu afã de mimar os Bancos, esquece o BdP estas três realidades insofismáveis:

- Tratando-se de depósito de coisa fungível de que o depostário possa dispor:

(i) o depositante, além de pagar o serviço de guarda, deve autorizar expressamente o uso do objecto depositado, podendo mesmo fixar condições e limites a esse uso;

(ii) o depositário, por sua parte, deve remunerar o depositante pelo permitido uso. Alguém ouviu já falar disto, a propósito dos “depósitos bancários”?

 

- Já o Código Comercial de Seabra (1888), que não se deixava iludir por palavras, qualificava o depósito de coisa fungível como “depósito irregular”, mandando aplicar-lhe o regime jurídico dos “empréstimos mercantis”. Empréstimos, não depósitos - logo, devedores, não depositários.

 

  • Os “depósitos bancários” têm, hoje, natureza escritural, meros registos que não correspondem à entrega de nenhum objecto, mas à transmissão de créditos:

(i) as notas (moeda fiduciária) depositadas são dívida de um Banco Central;

(ii) os cheques depositados (e as transferências bancárias) são créditos sobre um qualquer Banco Comercial;

(iii) até o crédito em conta de empréstimos corresponde à divida do respectivo mutuário.

         Em suma, nenhum objecto é depositado, num “depósito bancário” - são, sim, transmitidos créditos a favor

         do Banco depositário, que vai exercê-los como legítimo titular.

 

  • Se num “depósito bancário” nenhum serviço de guarda é verdadeiramente prestado - antes, é o Banco depositário que assim se financia - por mor de quê vem o BdP defender que os Bancos devem ser remunerados por contrairem voluntariamente uma dívida? De ora em diante, quem faça o favor de pedir dinheiro emprestado a um Banco também vai passar a ter direito a ser remunerado por isso?

 

  • É claro que há “depósitos bancários” e “depósitos bancários” - e ninguém, nem mesmo o BdP, nega que um “depósito a prazo” é, na realidade, dívida do Banco que o aceita (apesar da designação tradicional). O problema são os “depósitos à ordem”.

 

  • Que “depósitos à ordem” são dívida de Bancos, não restam dúvidas. Mas são também a componente principal do sistema de pagamentos: em qualquer economia desenvolvida, mais de 90% da liquidez que lá circula é moeda escritural (dito de outro modo: “depósitos à ordem”). São assim os Bancos que asseguram o funcionamento do sistema de pagamentos - logo, da economia. Devem eles ser remunerados por isso?

 

  • Devem - e são, de facto. São:

(i) quando, sem sobressalto, podem seguir operando com níveis de endividamento que levariam outras quaisquer empresas (mesmo as Seguradoras) à insolvência;

(ii) quando têm acesso, permanente e em exclusivo, à liquidez proporcionada por Bancos Centrais, com taxas de juro que não estão ao alcance de mais nenhuma empresa;

(iii) quando, graças à garantia implícita de liquidez subscrita pelo Banco Central, podem financiar com “depósitos à ordem” (leia-se: dívida à vista) investimentos pouco líquidos e com prazos dilatados, sem que ninguém se assuste.

 

  • Para mais, nenhum Banco é obrigado a “receber depósitos à ordem”. Fazem-no porque lhes convém. E só mantêm a ficção medieval de que há objecto depositado, porque nisso têm interesse - e o BdP alinha, já, quando dá cobertura à ficção, já, quando dá cobertura à cartelização.

ABRIL de 2015

Palhinha Machado.jpg A. Palhinha Machado

 

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