CATURRICES XL
DAS PORTUGIESISCH SATRAPIA
v Perante as perspectivas com que a troika e, antes dela, a nossa desvairada propensão para nos endividarmos lá fora nos deixaram, que dizer? Que tal pôr tudo em perspectiva?
v Imagine, Leitor, que se eleva na “passarola” do Pe Gusmão para ver, lá bem do alto, o que temos pela frente. Geoestratégia, é o que é.
v O que primeiro salta à vista é o fim anunciado do mundo unipolar, centrado no Atlântico Norte, dominado pela língua inglesa, pela “common law”, pelo modelo de mercado e pelo poder dos EUA.
v O que se avizinha é um mundo multipolar que os oceânos continuarão a desenhar - onde o Atlântico Norte será um de, talvez, 4 pólos geoestratégicos, e verá a sua supremacia de séculos cada vez mais posta em causa. E os restantes?
v O Pacífico Norte, com as suas potências dominantes: EUA, China e Japão. Por lá, o mandarim dificilmente disputará o lugar de “língua franca” - papel que a língua inglesa continuará a desempenhar na perfeição, atraindo a Austrália e a Nova Zelândia. O modelo de mercado, tal como a cultura jurídica, conhecerão ali variantes por vezes tão díspares que se diria serem coisas diferentes.
v O Índico aguardará, pachorrento, o ressurgimento da Índia e do Irão que, com a Austrália, reunem as condições mais favoráveis para se afirmarem como potências dominantes. O inglês será a “língua franca” indisputada, arrastando com ela a “common law” e o modelo de mercado - com adaptações locais que não beliscarão o essencial. Mas vai tardar ainda uns bons anos a despertar.
v Os EUA, com a sua posição de charneira entre o Atlântico Norte e o Pacífico Norte, fortes da sua língua, da sua cultura jurídica e do seu modelo económico, tenderão a ser o primus inter pares nestes dois pólos. E arranjarão maneira de não serem uns estranhos no Índico.
v Numa escala mais modesta, é o que se passará com a Austrália, ponte entre o Índico e o Pacífico Norte. Mas a sua localização demasiado a Sul privá-la-á de muito protagonismo.
v Basta olhar para estes três pólos geoestratégicos para perceber que a projecção do poder económico assentará principalmente em dois vectores: o transporte marítimo e o transporte aéreo - suscitando este último problemas de logística algo mais complicados.
v As redes transoceânicas (ou intercontinentais) marítimas e aéreas serão estruturadas em torno de hubs: equipamentos capital-intensivos de concentração e distribuição de tráfegos, com acesso fácil a vastos hinterlands, que terão de ser geridos com assinalável eficiência - ou ficarão às moscas (haverá sempre um hub nas redondezas pronto a tomar-lhes o lugar).
v E, lá do alto, começa-se a distinguir com nitidez uma rede para movimentação de pessoas e mercadorias constituída por hubs aéreos intercontinentais que têm, muito próximos, hubs marítimos também intercontinentais. Esta será a rede global - na qual assentarão as redes próprias de cada pólo geoestratégico que, por sua vez, se ramificarão pelas redes regionais.
v Não será arriscado prever que o poder económico coalescerá em torno desta rede global.
v Uma outra realidade salta também à vista: a Rússia. Forçoso é reconhecer que a Rússia não está especialmente bem posicionada nesta nova arquitectura mundial:
- Tem, apenas, janela para o Pacífico Norte, mas o seu centro económico está muito distante, totalmente a Ocidente, para cá dos Urais;
- Consequentemente, para projectar poder económico contará com o transporte aéreo e o transporte terrestre, mas não com o transporte marítimo;
- Dito de outro modo, a rede global não passará pelo seu território.
v Daí, provavelmente, as suas recentes iniciativas no Mar Negro (e o temor de algo semelhante no Mar Báltico), para não perder por completo a capacidade de manter o transporte marítimo na sua panóplia de vectores estratégicos. Mas só poderá recuperar protagonismo se, entretanto, surgir um novo pólo geoestratégico no Mar Ártico (que terá de ser navegável durante a maior parte do ano).
v Resta o Atlântico Sul. A poente, o domínio do Brasil não terá contestação (a Argentina está demasiado distante do hemisfério norte). O Brasil:
(i) que fala português;
(ii) praticante, mas não totalmente adepto, do modelo do mercado;
(iii) cuja cultura jurídica oscila entre a “common law” (nas leis para a economia e a finança) e o direito codificado europeu (sobretudo, nas matérias administrativas, fiscais e laborais) - sem conseguir fazer uma síntese coerente.
v A nascente, tudo em aberto, com a Nigéria e Angola melhor posicionadas para se tornarem no outro pilar deste pólo. Aquela, já fluente na “língua franca”, seguidora da cultura jurídica anglo-saxónica e com alguns passos dados no modelo de mercado. Esta, expressando-se em português, ainda sem um modelo económico definido e com uma cultura jurídica decalcada do direito codificado, logo, profundamente administrativista e regulamentadora - ou seja, nos antípodas da “common law”.
v Nesta compita, a Nigéria tem tudo a seu favor - excepto a localização: demasiado a norte para que o seu hinterland se estenda convenientemente pela África a sul do Equador. Aliás, é também a localização geográfica que penaliza a África do Sul (muito afastada de tudo e com um hinterland curto, tal qual a Argentina) e a Zâmbia (sem acesso ao mar e, por isso, amputada do transporte marítimo). O ex-Congo Belga é, por enquanto, um Estado falhado - logo, não conta.
v Em suma: no Atlântico Sul está tudo em aberto - e nem é certo que por lá venha a surgir um pólo geoestratégico. Não basta geografia. É indispensável organização nacional (que nem a Nigéria, nem Angola ainda têm), poder económico (que, até ver, é em ambas uma esperança longínqua), vontade e capacidade política (que o Brasil ainda não provou ter).
v Nesta dúvida, as condicionantes técnicas do transporte aéreo vêm dar uma ajuda. Rotas intercontinentais com duração próxima das 9 horas e meia, ao permitirem duas viagens por dia (ou seja, cerca de 19 horas de voo facturadas em cada período de 24 horas), representam as condições ideais para rentabilizar aeronaves e tripulações.
v E é aqui que entra Portugal: o único ponto do Atlântico Norte que tem, tanto o centro económico do Brasil, como a costa ocidental de África bem a sul de Luanda, a menos de 9 horas e meia de voo. É o 3º vértice do triângulo perfeito com o Brasil e Angola: por enquanto nada mais do que um proto-pólo geoestratégico.
v Converter este triângulo num pólo geoestratégico exige vontade e um esforço enorme. Geografia não basta - e as potências hegemónicas dos outros pólos tudo farão para não terem mais competidores.
v Mas, acima das núvens, mete-se pelos olhos dentro a importância estratégica de Portugal:
- No transporte marítimo e, sobretudo, no transporte aéreo entre a Europa e o Atlântico Sul e, também, a parte sudoeste do Atlântico Norte;
- No transporte marítimo que, uma vez concluido o alargamento do canal do Panamá, irá trazer do Pacífico Norte à Europa navios porta-contentores com o triplo da actual capacidade;
- Com a sua plataforma continental, a maior do Atlântico Norte.
v Tal como na nova arquitectura mundial os EUA “cavalgam” dois pólos geoestratégicos, Portugal, integrado no Atlântico Norte, poderá converter-se num dos pilares que vão estruturar a rede global: para o Atlântico Sul (transporte aéreo e transporte marítimo) e para o Pacífico Norte (transporte marítimo). Assim tenha hubs à altura.
v Não surpreende, pois, que os interesses afectados (os portos marítimos do Norte da Europa, sobretudo Roterdão e Havre, mas também Cádis e Málaga; tal como os aeroportos de Madrid, Paris e Londres) se movimentem. Fossem outros os tempos, e as tentativas de conquista manu militar seriam sempre uma possibilidade a considerar.
v As coisas, hoje em dia, são, porém, mais soft. Nada de eliminar a soberania, que continuará formalmente reconhecida. Basta que não haja condições para exercê-la - ou que, quem estiver mandatado para a exercer, alinhe, consciente ou inconscientemente, com as agendas estrangeiras.
v Que ninguém se iluda: há uma agenda geopolítica para a Europa. Agenda que será impossível de concretizar por quem se situe no hinterland europeu sem nenhum pilar da rede global no seu território - nem capacidade para subordinar pelo menos um desses pilares aos interesses do seu próprio poder económico.
A. Palhinha Machado
JUNHO de 2014