ANDA COMIGO – 7
De San Sebastian à fronteira foram cerca de 25 quilómetros numa estrada simpática por meio duma paisagem variada e com influência marítima. Lembro-me de termos que esperar numa longa fila de carros e camiões mas a certa altura os pesados foram para um lado e nós, os ligeiros, para outro. E tudo se aligeirou. Até porque a fronteira ferroviária era do lado de lá da fila dos pesados e a confusão não quis nada connosco.
Naquela época, os comboios na Península tinham uma bitola mais larga que a do resto europeu como forma de dificultar uma putativa invasão vinda do lado de lá dos Pirinéus sob as ordens de algum tonto que não conhecesse a opinião de Napoleão. E que opinião era essa? A de que ele próprio nunca arriscaria uma batalha cá nestas paragens temendo algum vexame e por isso enviou sempre algum general que o representasse. O general que se humilhasse, ele, Napoleão, que se safasse. Portanto, ali, naquela fronteira, os passageiros dos comboios tinham que fazer o transbordo e isso, à mistura com as formalidades aduaneiras, fazia um burburinho muito grande. Mas a nossa «porta» era outra e passámos tranquilamente.
Em Hendaia houve um hospital português. Não o vislumbrei. Não, não foi que os franceses precisassem da nossa ajuda sanitária, foi uma acção pontual de apoio ao Contingente Militar Português que se bateu na guerra de 14-18. Da cidade, não me lembro de qualquer coisa que mereça citação ao fim destes 59 anos. Queríamos chegar a Biarritz dali a 40 quilómetros por uma estrada relativamente boa em que, pela primeira vez, vi uma faixa central para ultrapassagens. Enquanto por ali andámos, não vimos dois teimosos a quererem ultrapassar ao mesmo tempo mas em sentidos opostos. Durante muitos anos, o meu pai assinou o AutoJournal que sistematicamente blasfemava contra esta terceira faixa e publicava desenhos dramáticos de choques frontais um pouco por toda a França. Devem ter sido muitas centenas de mortos enquanto aquela imbecilidade persistiu. Mas chegámos sãos e salvos a Biarritz sem termos que fazer qualquer pega de caras a um desembestado que viesse lá da frente.
Por qualquer razão, não parámos em Saint Jean de Luz e, chagados a Biarritz, passámos perto da praia à hora da enchente. Fiquei encantado com a descontração das pessoas. Nada do formalismo circunspecto ibérico, registei na memória um grupo de três ou quatro veraneantes loiras de shorts quase «à cava» e com toalhas ao ombro. Uma delas tinha uma blusa às riscas azuis e brancas. Se eu hoje tenho 75 anos, ela deve ter quase 100 mas se ler estas linhas, fique sabendo que há 59 anos aquela blusa e respectivo conteúdo chamaram a atenção de quem passava num «pão de forma». E, por incrível que possa parecer, esta foi a imagem que retive de Biarritz.
Bordéus, a cerca de 200 quilómetros, próxima etapa. É óbvio que pernoitámos algures pois visitámos Bordéus pela manhãzinha. E se da cidade – onde nunca mais voltei – me resta apenas uma vaga ideia (nada que a Internet não resolva), há outra curiosidade que dá para contar com prejuízo da extensão deste escrito.
O meu avô materno era industrial de conservas no Algarve e em Marrocos pelo que instalou um escritório em Bordéus e outro em Londres para fazerem a comercialização das ditas conservas em França e Inglaterra, respectivamente. Foi então que o meu avô decidiu acrescentar um «L» ao Sales original para distinguir do «sales» francês (sujos) e do «sales» inglês (saldos). E assim passámos a ser Salles em vez de Sales.
Eis como, para mim, Bordéus se escreve com mais um «L».
E hoje fico-me por aqui pois, à custa de banalidades, o texto já vai longo. Amanhã há mais.
(continua)
Abril de 2020
Henrique Salles da Fonseca