AMAZÓNIA – 8
- Trabalho escravo?
- NÃÃÃÃO, que IDEEEEEEEEIA!!!!! Nem pensar nisso é bom.
Este foi um diálogo que não ouvi em parte alguma do seringal que fomos visitar. Pois é! Há quem diga que não havia escravatura na economia da borracha. Mais: quem disser o contrário, não sabe o que diz ou mente descaradamente.
Sim?
As coisas passaram-se entre os finais de 1800 e os princípios de 1900. Foram cerca de 30 anos de euforia na Amazónia, centrada sobretudo em Manaus e em Belém (apesar de Belém ser administrativamente do Pará e não do Estado da Amazónia).
Foi a economia da borracha a partir do látex da Hevea brasiliensis, árvore originária da região amazónica. E essa vasta região não se localiza assim tão longe daquele que então era o pobre Nordeste brasileiro onde as gentes praticamente morriam à fome e à sede. Mas quando esses miseráveis famintos ouviram falar de trabalho no Amazonas, não hesitaram em mover céus e terras para emigrarem para lá e, economizando, mandarem dinheiro à família que ficava para trás. E foram...
E foram debitados do custo do transporte logo que puseram pé no barco que os levaria Amazonas acima. E foram debitados pelo preço da alimentação que lhes era fornecida a bordo. E foram debitados de tudo, não sei mesmo se do ar que respiravam. Chegados a Manaus (ou a Belém), eram então concentrados num grande recinto donde saíam para os seringais necessitados de mais seringueiros. E continuavam a ser debitados pelo custo do transporte, da alimentação e de...
Paralelamente, o Governo do Brasil era creditado pelo Governo dos EUA em US$ 100,00 por cada seringueiro chagado a Manaus (ou a Belém).
Até que chegavam ao ponto de destino, o seringal a que alguém os afectara, para serem debitados pelo valor do equipamento que lhes era fornecido para poderem trabalhar e pelo valor de tudo o mais que pudessem consumir. Isto significava que, antes de extraírem o primeiro grama de látex, já estavam endividados perante o dono do seringal (que já assumira a dívida deles desde a origem no Nordeste) de um modo que não poderiam alguma vez ter imaginado.
Em contrapartida, eram creditados pelo valor do látex que recolhiam durante a noite pois que era impossível suportar o calor durante o dia. E como o dia era muito quente, os seringueiros aproveitavam-no para... derreterem ao lume o látex recolhido e produzirem as bolas que constituíam a unidade de transporte do produto final. Esta bola era submetida a exames de qualidade e se fosse detectada alguma fraude (incorporação de pedras ou terra), o seringueiro era pura e simplesmente executado. Ponto final na trapaça.
Bola de latex
(por trás da minha cabeça está uma peneira pendurada num pilar da casa, não um chapéu)
E como eram calculados todos estes valores lançados a débito e a crédito de cada seringueiro? Sim, eram calculados segundo um método muito “claro”: o do capataz.
Assim ficavam os seringueiros eternamente a tentar saldar a dívida até que... E a quem conseguisse saldá-la, logo o patrão o presenteava com algum descanso em que lhe fornecia comida, bebida e mulheres de prazer. Custos estes que lhe eram debitados, obviamente, de modo que o ciclo se repetia por aí além...
Poupanças a enviar às famílias no Nordeste? Pas du tout, je crois. Essas, lá longe, sempre tinham menos uma boca para alimentar.
Manaus floresceu com a economia do látex com que se fabrica a borracha, matéria prima fundamental para o fabrico de pneus. O cliente final era, pois, a indústria automóvel americana.
Muitos seringais eram de propriedade estrangeira e o Museu da Borracha que eu visitei era a reconstituição do seringal de um alemão.
Mas havia o comércio internacional e os ingleses não deixaram essa matéria passar ao largo. De tal modo que os cais flutuantes de Manaus que eu pisei são os mesmos que foram construídos com ferro produzido em Bristol; assim como o edifício da Alfândega foi transportado, peça por peça, de Bristol para o local em que actualmente se encontra, ali junto ao porto fluvial manauara.
E a riqueza era tal e tanta que as Senhoras não queriam que a roupa fosse lavada com a água do Rio Negro e mandavam-na lavar fora... em Lisboa ou em Bristol, conforme o navio que estivesse para zarpar a caminho da Europa.
E da Europa chegou a ópera. Os manauaras gostavam de ópera? Isso era o que menos importância tinha. O que era importante era eles terem um teatro maior que o A la Scala, de Milão. E tiveram-no! Ainda lá está e é um ex libris de Manaus.
Para que os mortos não se revoltem nos caixões, o grande Teatro Amazonas continua a apresentar um ou dois espectáculos de ópera por temporada mas durante o resto do ano a sala tem uma agenda intensíssima sobretudo com espectáculos de teatro (não obrigatoriamente musicado) quase todas as manhãs e com entrada livre. São iniciativas de teatro experimental, de teatro amador, de teatro infantil, etc. Mas é lá que se exibe a Orquestra Filarmónica do Amazonas e se realizam muitos espectáculos de dança e até mesmo de ballet [1].
Mas os ingleses agarraram nuns pezinhos de Hevea Brasiliensis e viajaram com eles até ao Oriente onde fizeram plantações mais rentáveis que as amazónicas (amazonenses, como se diz por lá) e a economia brasileira da borracha definhou.
Assim como a estrada Trans-Amazónica está intransitável e foi invadida pela floresta em muitos troços - tudo tem que ser transportado de barco ou avião - também os grandes seringais deixaram de ser úteis e aquela ubérrima região brasileira procura agora novo modelo de desenvolvimento. Fizeram de Manaus um porto franco que atraiu muitas indústrias de montagem (e não de produção propriamente dita). Chegou-se à conclusão de que o produto fica mais caro do que o admissível e tudo está em recessão.
O modelo de desenvolvimento terá que ser outro. Haverá isenção política suficiente para o tema ser debatido com seriedade? O actual clima político brasileiro não é bom conselheiro para debates serenos.
FIM DA SÉRIA AMAZÓNICA
Lisboa, Abril de 2016
Henrique Salles da Fonseca
[1] - Para saber mais, v. www.cultura.am.gov.br