ALTO E MAGRO
A cena passou-se há uma trintena de anos mas não a esqueci. Também não me passou a dúvida que então me surgiu.*
* * *
Estava eu sentado algures no aeroporto de Bruxelas à espera de saber qual seria a porta de embarque do vôo para Lisboa e, vindo não sei donde, um cavalheiro bastante alto e muito magro aproxima-se da cadeira vaga à minha frente do outro lado da coxia. Era preto (negro, para os complexados do «politicamente correcto»). Vestia de negro (para não voltar a incomodar os mais sensíveis). Pensei que os negros costumam vestir-se de cores garridas mas imaginei que pudesse estar de luto. Sentou-se lentamente como se fizesse cerimónia com a cadeira e tirou o cachecol. Vi-lhe o cabeção. Era Padre e trajava de luto por Cristo há (então quase) dois mil anos na Cruz. Pausadamente, cruzou as pernas, ajeitou a calça para não fazer joelheira e vi-lhe a meia encarnada. Era Cardeal.
Semicerrei os olhos para não perturbar (muito) a privacidade de Sua Eminência e, passados poucos momentos vi que super disfarçadamente se persignara e cruzara as mãos de dedos entrelaçados. Rezava de olhos baixos. Depois de tempo que a todos poderia ser considerado de mais, o microfone chamou os passageiros com destino a Roma. Tão discretamente como de início, persignou-se, destcruzou as pernas, levantou-se lentamente, agarrou a maleta que não citei de início e lá foi…
E eu fiquei a imaginar o que traria Sua Eminência na maleta. E pus-me a imaginar: um dentífrico, uma escova de dentes, uma máquina de barbear a pilhas, um after-shave, um Breviário, uma estola roxa e uma provisão de Santos Óleos para alguma emergência. Só espero que, na precipitação típica duma emergência, Sua Eminência nunca tenha sido levada a encomendar a alma de algum moribundo com o after-shave.
Contudo, a dúvida que me ficou até hoje é a de a saber se se pode rezar de perna cruzada ou se isso só é permitido a Cardeal. Será? Ora, sei lá!
28 de Junho de 2022
Henrique Salles da Fonseca