ALEXANDRE CASTRO CALDAS – Neurologista – 5
Aos 65 anos, neurologista rejeita uma idade para a reforma e defende mais oportunidades para idosos terem os seus projectos
Não vê virtude nenhuma na austeridade?
Não vejo virtude na austeridade. Querer transformar isso e dar-lhe um ar que pode ser óptimo para a evolução da sociedade é perverso. Não é pelo sofrimento que as pessoas resolvem o problema.
Que marca deixou esta crise na nossa saúde mental?
É preciso ter algum cuidado nessa análise. Podemos dizer o que achamos mas isso tem pouco valor. Já ouvi pessoas a dizer que aumentou a depressão e outras que não. Acho que as pessoas estão mais tristes e tristeza não é depressão. Afecta o nosso dia-a-dia mas não se resolve com remédios mas integrando as pessoas.
Mas induz uma espiral negativa, que não ajuda a recuperar?
O negativismo pega-se. Agora também temos de ter alguma memória. A minha família é do Norte, de Arcos de Valdevez, e lembro-me de ver crianças nuas da cintura para cima e sem sapatos na rua, a tuberculose matava a família toda.
As pessoas sabem lá o que é fome comparando com esses tempos. O problema é que tivemos uma geração de abundância que criou expectativas e ficou sem elas. Isso é o pior que se pode fazer a uma pessoa, mesmo que a situação do país não seja a pior.
Se mandasse, como é que saía desta situação?
Não era capaz de mandar. Não sei como é que eles dormem.
Fala-se do cérebro de quem manda, de haver mais psicopatas na política.
O político tem de ter um cérebro autónomo, um pouco autista.
Consegue ver esses traços de autismo nos nossos governantes?
Às vezes consigo.
Por exemplo?
Não vou exemplificar mas há alguns particularmente autistas, de ambos os lados. Mas repare-se, é uma adaptação. Num contexto em que se ouve muitas opiniões, é muito difícil tomar decisões. É natural que quem tem de tomar decisões tenda a restringir quem ouve.
O que é que antevê para o país?
É muito difícil fazer previsões. O período da guerra do Ultramar foi horrível para a minha geração, tive amigos que morreram aos 20 anos. São coisas horríveis que a sociedade ultrapassa. Penso que acontecerá o mesmo.
A sua geração ainda está mais marcada por isso de que por esta crise?
Ainda há pessoas muito marcadas. É uma experiência profundíssima e o cérebro jovem guarda-as. As gerações mais novas não o recordam, têm uma visão histórica, é como pensar na batalha de Aljubarrota. Mas há outros momentos que marcaram. O primeiro 1.º de Maio foi uma coisa única.
Como viveu o 25 de Abril?
Foi um período complicado em que era difícil perceber o que ia acontecer. Houve acontecimentos dramáticos, foi dificílimo para mim perceber coisas como a invasão da embaixada de Espanha. Como é que se entra lá, despeja-se as pessoas e queima-se tudo cá fora, obras de arte, tudo. Tudo era possível naquela fase. Antes do 25 de Abril havia manifestações na rua, reuniões mais ou menos clandestinas e controlo policial. Mas apesar de tudo sabíamos as regras. A polícia marchava sobre a manifestação mas sabíamos como fugir. Quando se criou aquela situação sem governo, deixou de haver regras.
Correu bem mas naquele momento a sensação que tive era que podia ter corrido mal. Tinha uma filha pequena e estava aflito.
Quarenta anos depois, o que faz falta?
Uma figura capaz de intervir a nível europeu e marcar uma viragem. Precisamos de uma figura na Europa que consiga perceber para onde vamos. Porque é que Churchill foi a Atenas na guerra civil da Grécia? Foi ali que nasceu a cultura, a Europa não pode olhar para a Grécia como se fosse uma coisa qualquer. Portugal foi um país fundamental para a Europa, abriu as rotas do mundo. Não podemos ser os coitadinhos. O que é que os alemães andavam a fazer enquanto a gente andava a descobrir? Eram bárbaros. Portugal tem um capítulo importante na história da Europa e por isso não tem nada que ser considerado um país da periferia.
Para esta sociedade isto não interessa?
Mas a história está nos genes das pessoas. O que aconteceu em Portugal é muito secundário em relação ao que está a acontecer no resto do mundo. Voltamos ao dinheiro: o modelo de funcionamento da sociedade provavelmente não está bem.
Não está no nosso cérebro perseguir o dinheiro, querer mais?
O problema é que as áreas do cérebro associadas à recompensa, que activam com dinheiro ou com outras coisas, são as mesmas. Isso é que é chato. Se houvesse uma areazinha para o dinheiro e outra para as outras coisas boas era mais fácil.
É mais fácil compensar com dinheiro?
É mais fácil, é mais imediato. Agora a bolha rebentou e isso vai ter uma solução com certeza. Precisávamos de perceber que os valores das pessoas são outros, precisam de uma sociedade diferente que não as encare como coisas. Hoje em dia até já há pessoas capazes de responder quanto vale a vida humana. É um perfeito absurdo.
Começa a falar-se disso na saúde e no SNS.
Na saúde portuguesa vejo uma catástrofe, desapareceu o interesse pela pessoa. Como é possível uma pessoa ter um exame marcado e não o deixarem fazer por faltar um papel? Ou não se justifica o exame ou depois leva o papel.
Na procura de um maior controlo da despesa esqueceu-se as pessoas.
Mas antes havia mais desperdício.
Com certeza, mas isso resolvia-se com organização. Conseguiu-se isso sacrificando o respeito pela pessoa e o conhecimento. Quando se impõe que uma consulta tem de demorar 15 minutos acabou. Uma consulta demora o tempo que tem de demorar. Assim as consultas só correm o risco de sair mais caro porque vão exigir mais exames.
Tem saudades do hospital?
São coisas diferentes. Neste momento não conseguia viver no hospital. A dizerem-me para pôr o doente na entrada. Não pode haver horário de trabalho. Temos de fazer o que é preciso.
Como se torna o SNS sustentável?
O problema está nos recursos humanos. É preciso criar condições para contratar bem e trabalhar. O sistema público não se pode pôr em paralelo com o sistema privado porque sai mais barato. Enquanto o SNS quer prevenir a doença, o privado vive da doença. Estão em conflito e é muito difícil serem parceiros. O privado é hospitalocêntrico, é uma oficina que vive de haver carros avariados.
Não se revê na estratégia do governo de encarar o sistema de saúde como um todo?
De todo. A questão reside na capacitação dos recursos humanos no sistema público. Isto resolve-se com contratações inteligentes em que as pessoas sabem o que vão fazer e cumprem ou não. A reforma do Estado era passar-se uma vez por todas a dizer o senhor está cá para fazer isto. Qualquer pessoa aceita este negócio. Ao fim de um período, três anos ou o que for, não fez vai embora. Tem de haver uma avaliação séria.
A reforma foi uma oportunidade perdida?
Gostava que tivesse havido alguma reforma do Estado mas não houve nenhuma.
FIM