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A bem da Nação

A SUBSTÂNCIA POLÍTICA DA BOFETADA

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Pode ser romântico, mas a existência de personagens novecentistas como João Soares na política igualitária e dessacralizada do século XXI é um anacronismo que só podia acabar como acabou: numa demissão.

 

Há quem julgue que a ameaça de João Soares a Augusto M. Seabra e a Vasco Pulido Valente não passou de uma simples declaração de deselegância ou de falta de chá. Não é o caso. Muitos pensam que a promessa de umas “salutares bofetadas” são apenas um impropério vulgar de uma pessoa que há muitos anos se afirma em público pela grosseria travestida em desassombro ou em coragem política. É pouco para explicar o lamentável episódio que conduziu à sua abençoada demissão. João Soares deu-se ao luxo de armar em cavalheiro do tempo das cartolas e das bengalas para se dedicar à justiça por mãos próprias porque faz parte de uma certa classe de políticos que se julgam investidos de um direito divino a viver e agir acima dos mortais.

 

É essa convicção de déspotas iluminados pelo passado e pela intransigência ideológica que os leva a confundir a ameaça com a liberdade de opinião, o direito de resposta com o castigo aos que os ousam questionar. Um plebeu da política, tipo Passos Coelho ou Jorge Coelho ou Mário Centeno ou Augusto Santos Silva, seria fuzilado se alguma vez ousasse sequer meter um estalo no discurso; um aristocrata da política, como João Soares, pode prometê-los a quem bem entender porque, vindo de quem vem, não é ameaça, nem insulto, nem deselegância, nem terceiro-mundismo. É direito à palavra.

 

Pode ser romântico, mas a existência de personagens novecentistas como João Soares na política igualitária e dessacralizada do século XXI é um anacronismo que só podia acabar como acabou: numa demissão. Na sexta-feira, quando o país se ria ou indignava com a ameaça patética do ministro, tornou-se premente saber como iria o primeiro-ministro reagir. Costa, porém, esteve bem. Não precisava afrontar uma ala poderosa do seu partido, e não o fez. Não precisava de se assumir como um espalha brasas que vocifera à primeira contrariedade de um elemento cuja escolha foi da sua responsabilidade, e não o fez. Revelando a sua meticulosa arte de aranha política, capaz de construir teias à medida para qualquer estratégia, limitou-se a deixar o isco envenenado. Dizendo que um ministro é um ministro até no café. E pedindo desculpas aos visados. Dificilmente um diplomata experiente seria capaz de produzir um ultimato com tanta subtileza e eficácia.

 

Quando um ministro se digna prometer bofetadas a críticos numa página de uma rede social, a suspeita de que perdeu a noção das coisas torna-se pertinente; quando é forçado a demitir-se e não é capaz de perceber o erro em que caiu, a certeza de que vive num mundo paralelo, na qual uma qualquer cultura de valores jacobina e elitista ainda reina, ganha consistência. Ao cair, João Soares arrasta consigo um pouco dessa corte que se julga ter direito a tudo e a ser capaz de tudo por ter um passado e ideias irredutíveis que o testemunham. O PSD há muito que aboliu os baronatos e desceu ao país das pessoas comuns. É boa notícia que o PS esteja a seguir o mesmo caminho. Como dizia Paulo Rangel, está na hora de acabar com os doutores. Os que se julgam tão sábios e tão etéreos que até acham que as bofetadas podem ser “salutares”.

 

10/04/2016

 

MANUEL CARVALHO

 

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