A REVOLTA DAS ELITES
As críticas à política de redução da despesa pública só fazem sentido por parte de quem considera que o pagamento das dívidas é «coisa de criança».
Ora, o poço sem fundo que esses críticos julgam existir é mais uma ilusão que apenas revela o irrealismo de quem crê que o dinheiro nasce do prelo. Não, o dinheiro é o resultado da produção de bens e serviços, transaccionáveis ou não, mas sempre tendo origem no esforço de alguém que não a rotativa da moeda falsa a que sofisticada e eufemisticamente se tem chamado «eurobonds».
Se conjugarmos a política de consolidação orçamental no sentido da anulação dos défices simples (anuais) e dos acumulados com a da restrição monetária para evitar o crescimento dos preços na espiral doentia por que já passámos, então a emissão monetária assume dimensões que quem nos conduziu ao colapso apelida de cilício ou até mesmo de cinto de castidade.
A crítica que temos de aceitar é a de que no meio de todo o processo de financiamento das dívidas soberanas dos Estados mais perdulários há movimentos especulativos na certeza, porém, de que por enquanto nos resta pagar o que devemos (menos prosaicamente, «servirmos a dívida») e não esbracejarmos muito para conseguirmos que nos respondam positivamente enquanto formos progressivamente pedindo cada vez menos até que os saldos primários voltem a ser positivos e possamos então começar a reduzir o montante da dívida total. Mas para que isso aconteça, daria muito jeito que as taxas de juro não continuassem a subir como tem acontecido desde que o absurdo democrático se instalou no nosso país.
A imperiosidade da pureza não especulativa dos capitais que nos financiam (e aos outros perdulários deste mundo) foi matéria a que Dominique Strauss Kahn pretendeu dar prioridade e todos fomos testemunhas da «estrangeirinha» que alguém lhe armou; o ostracismo a que James Tobin foi remetido em Yale lá pelos idos de 80 do século passado também há-de querer dizer qualquer coisa... Sim, é desejável que cheguemos a um acordo a nível da UE com vista à taxação dos movimentos transfronteiriços de capitais especulativos. Mas de momento interessa sobretudo cuidar do acesso de Portugal aos meios necessários ao financiamento dos seus défices e menos avaliar as intenções dos proprietários desses mesmos capitais cuja origem se deseja transparente. Mas para ter acesso a esses meios de cobertura das nossas necessidades, torna-se imprescindível que Portugal continue a pagar atempadamente as dívidas sob pena de deixar de merecer a confiança dos seus credores. E o pagamento atempado dessas dívidas só se consegue no imediato pelo recurso a capitais alheios, sucessivamente menores até que desnecessários. Gerir as taxas de juro não é coisa que um devedor maneje com desenvoltura. Eis por que algo ao estilo da Taxa Tobin poderia ser importante nesta altura evitando a especulação e criminalizando a manipulação.
Tudo para concluir que o «modelo de desenvolvimento» por que estamos de novo a trilhar em direcção ao abismo tem que ser modificado de modo a que confirmemos a aposta na produção dos bens transaccionáveis que é muito mais cómodo importar pois só desse modo poderemos voltar a reduzir os défices das balanças de transacções correntes e de pagamentos, criarmos as condições para abrandar e anular o ritmo de endividamento do sistema bancário nacional face ao exterior e recuperarmos a credibilidade externa que já nos falhou e que a qualquer momento pode voltar a falhar.
Mas esta reviravolta só seria possível acordando uma população adormecida pelos «cantos de sereia» que a demagógica compra de votos (nos sucessivos actos eleitorais) fez soar ao longo de quase 40 anos e, num país como o nosso que deve bater o recorde europeu na propensão marginal à importação, o primeiro toque de alvorada tinha que seguir a pauta da drástica redução do consumo. E não é isso que os usurpadores apregoam. Pelo contrário, dizem que o consumo é motor do desenvolvimento. Puro sofisma.
Da redução do consumo resulta um grande desconforto entre os consumidores e isso desde a base social até às elites.
E a que desconfortáveis me refiro?
Os que giram pela alta finança só têm motivos de satisfação se forem proprietários desses capitais que beneficiam de juros definidos no spot bolsista e são inimigos da putativa entrada em vigor de alguma limitação à circulação internacional desses capitais; os banqueiros já se choravam com as condicionantes de Basileia I, mais choraram com as de Basileia II e agora quase desesperam com os novos ratios que lhes vêm sendo impostos desde que a Lehman Brothers faliu e desde que os seus movimentos passaram a estar debaixo de olho não só do do ineficaz supervisor mas sobretudo do da opinião pública, apesar da escassez de informação que «salta» cá para fora; a produção de bens transaccionáveis acabara de ressuscitar quando a reviravolta se deu mas esperemos que se mantenha firme apesar das rasteiras que os demagogos se preparam para lhe dar; a grande agricultura nunca existiu em Portugal, o pouco que havia foi aniquilado para dar espaço ao escoamento de excedentes europeus e foi necessária a ruptura do sistema bancário perante o exterior para que a agro-indústria voltasse a dizer que, apesar de tudo, há quem não tenha desistido. Resta referir os jovens que foram educados na subsídio-dependência e esses, sim, com formação óptima para o desemprego, tiveram que emigrar e por lá terão que continuar mais uns tempos pois que a reconversão económica meteu férias em Portugal.
A solução está à vista e passa pela redução drástica da despesa pública corrente e pela cessação imediata da demagogia despesista, pela redução do consumo e pelo incremento da produção de bens e serviços transaccionáveis.
Dir-me-ão que com políticas sérias não se ganham eleições mas, eventualmente, é o regime constitucional que tem que ser revisto para que a seriedade assuma o lugar de que nunca deveria ter sido apeada.
Todos de rastos, só as elites políticas mantêm a convicção de que tudo vai bem. Mas essas vão ter que reconhecer que estão a liquidar o regime de que elas se têm lautamente servido e que a alternativa é o regime mudá-las quanto antes a elas próprias. E de nada lhes valerá revoltarem-se quando chegar o próximo resgate porque, então, já ninguém lhes dará ouvidos.
Se é que hoje ainda alguém as ouve...
Março de 2016
Henrique Salles da Fonseca