«A FELICIDADE, SE EU QUISER»
Hedonismo - Sandro Botticelli
A sociedade pós-moralista designa a época em que o dever é edulcorado e anémiado, em que a ideia de sacrifício de si próprio está socialmente deslegitimada, em que a moral já não exige que cada um de nós se dedique a um fim superior a si mesmo, em que os direitos subjectivos dominam os mandamentos imperativos, onde as lições de moral são ultrapassadas pelos «spots» do viver melhor, do Sol e das férias, do divertimento mediático. Na sociedade do pós-dever, o mal é espectacularizado, o ideal pouco exaltado; se a vergonha dos vícios se mantém, o heroísmo do Bem é átono. Os valores que reconhecemos são mais negativos (não fazer) do que positivos («tu deves»): por detrás da revitalização ética, é uma moral indolor que triunfa, último estádio da cultura individualista democrática, a partir de agora livre na sua lógica profunda, tanto no moralismo como no anti-moralismo.
(...)
A civilização do bem-estar consumista constituiu o grande coveiro histórico da ideologia gloriosa do dever. Ao longo da segunda metade do século [XX], a lógica do consumo de massas dissolveu o universo das homilias moralizadoras, erradicou os imperativos rigoristas e engendrou uma cultura onde a felicidade se impõe ao mandamento moral, os prazeres ao proibido, a sedução à obrigação. Através da publicidade, do crédito, da inflação dos objectos e das ociosidades, o capitalismo das necessidades renunciou à santificação dos ideais em benefício dos prazeres renovados e dos sonhos de felicidade privada. Uma nova civilização foi edificada, a qual já não se propõe estrangular o desejo, mas que o exacerba e o desculpabiliza: o usufruto do presente, o templo do eu, do corpo e do conforto, tornaram-se a nova Jerusalém dos tempos pós-moralistas.
Gilles Lipovetsky
In “O Crepúsculo do Dever – a ética indolor dos novos tempos democráticos”, ed. Dom Quixote, 4ª edição, Maio de 2010, pág. 57 e seg.