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A bem da Nação

MOÇAMBIQUE REViSITADO – 7

A causa do desenvolvimento foi traída de várias formas. A cada um a escolha do seu traidor.

Traídos, havia que salvar os dedos deixando ir os anéis. Regressei a Lisboa.

Desembarcado, colaborei activamente na criação da democracia pluripartidária, criei estabilidade profissional, casei, tivemos duas filhas e quando elas já estavam encaminhadas, foi altura de rever Moçambique.

Foi numa conversa informal que, por mero acaso, disse ao Francisco Lucas Pires que ia rever Moçambique e logo ele me respondeu que uns tempos antes tinha ido a Angola (já com José Eduardo dos Santos) e a Moçambique (ainda com Samora Machel) onde vira duas realidades completamente diferentes. E descreveu-as de modo bem sintético: em Luanda, os prédios estavam todos degradados; em Maputo, depois da devolução dos prédios aos proprietários que regressavam, o parque imobiliário estava em vias de recuperação; em Luanda, com os preços definidos por decreto, não havia nada nas prateleiras das lojas; em Maputo, com a liberalização dos preços, uma couve podia ser cara ou mesmo muito cara mas estava na banca do mercado municipal para que alguém a comprasse.

Não tencionava ir a Angola e não fui mesmo. Voámos directamente de Lisboa a Maputo num vôo de 10 horas.

Descolando para Sul, sobrevoámos Setúbal, rumámos a Sevilha e daí a Argel onde já era noite. Vôo sem história, amanheceu quando entrávamos pelo norte de Moçambique e aterrámos com manhã aberta em Maputo. Esperava-nos o transfer do Hotel Polana. Estava tudo nos mesmos sítios em que eu tudo tinha deixado 32 anos antes mas com mais gente ao longo das avenidas e ruas por que íamos passando. Os nomes das ruas é que deviam ser diferentes mas como os de antigamente pouco ou quase nada me diziam, não me preocupei em conhecer a nova toponímia maputense (ou será maputana?). O motorista que conduzia a dúzia de «transferidos» foi-nos avisando de que os funcionários municipais da recolha dos lixos estavam em greve e que não nos admirássemos se víssemos a cidade suja. Alertado, olhei e não vi a cidade especialmente suja. Vi, sim, montes de lixo a encher e à volta dos contentores e a leitura que fiz foi a de que a população juntava ali o lixo, não o deixava a esmo. Nota positiva para a população; registo de que a greve era legal.

Chegados ao destino, foi com emoção que vi o «meu» Polana a reluzir, igual ao que era quando eu por ali andara. Entrámos e tudo reluzia como antigamente. Fizemos o check in para o Polana Mar e ao atravessarmos o jardim da piscina, eis-me a regressar a 32 anos antes. Só as pessoas eram diferentes, não reconheci ninguém. Por que seria…??? Até que, já a entrar no hall das escadas que desciam da piscina para o Polana Mar, ouvi chamar -Doutor! Doutor! Era um funcionário todo fardado de branco como por ali sempre se usara com quem trabalhava na piscina. – O Senhor, de volta, seja bem-vindo. Eu era o “mufana” das toalhas no antigamente. Correspondi ao simpático acolhimento da forma mais consentânea com o espanto de um reconhecimento tão longínquo e segui escada a baixo. Mas logo comentei com a Graça que não me lembrava nada dele. “Mufana” significa criança e o Polana nunca nos «meus» tempos usou trabalho infantil. Aquilo era discurso-chapa que aquele Fulano usava quando via um português a chegar. Era estratégia de simpatia para se fazer à gorja. Antes assim do que de modo menos simpático. Por acaso, não sou engenheiro e ele acertou no título mas podia ter deitado tudo a perder se tivesse errado.

POLANA MAR.jpg

Chegados ao quarto, aquela vista deslumbrante sobre a baía a que os «bifes» chamavam Delagoa Bay.

E por aqui me fico hoje a ver a vista… amanhã há mais.

Agosto de 2019

Henrique Salles da Fonseca

MOÇAMBIQUE REVISITADO – 6

Lourenço Marques.png

 

No Serviço a que Samora Machel pertencia no Hospital Universitário, houve um concurso para duas vagas de Auxiliar de 2ª classe de Analista de Laboratório de Anatomia Patológica. Concorreram três candidatos sendo um preto e dois brancos. A classificação foi a de um branco em 1º lugar, o preto em 2º e o outro branco em 3º. As vagas foram preenchidas pelos dois brancos. (Esta informação foi-me dada pelo Professor Fernando Torres que, entretanto, era o Catedrático de Anatomia Patológica da Universidade de Lourenço Marques)

O reaparecimento de Samora como Presidente da Frelimo causou péssimo mal-estar no Regime do Estado Novo e logo o Governo de Moçambique (não sei se por iniciativa própria ou se a mando de Lisboa) se apressou a decretar que doravante as repartições públicas tivessem obrigatoriamente uma quota mínima de 50% de funcionários não brancos. Os indianos agradeceram.

Não sei bem como classificar o caso precedente mas, à distância de mais de 50 anos, a adjectivação que mais me ocorre tem a ver com estupidez. E será que a promoção de Samora a Auxiliar de 2ª mudaria substancialmente o curso da História? Duvido mas não hesito em afirmar que os não racistas em Moçambique (brancos, porque os outros são todos muito racistas) ficaram escandalizados quando souberam desse concurso. Mas esse escândalo só fez com que se tornasse ainda mais urgente acelerar o crescimento para que este, por si só, fosse capaz de corrigir tanta injustiça que os ultra-conservadores praticavam.

Quando por meados de 1973 cheguei à Secretaria Provincial[i] dos Transportes e Comunicações na condição de Adjunto do Secretário Provincial, logo fui integrado na corrida do desenvolvimento e foram-me confiados quatro dossiers que me cumpria coordenar e empurrar para a frente, informando o Secretário Provincial do que fosse relevante e pedindo as orientações convenientes. Foram eles o da TVM-Televisão de Moçambique, o dos grandes estaleiros navais de Lourenço Marques, o dos Estaleiros Navais da Beira e o do relançamento do Porto de Quelimane. Como se compreende, não fui atacado pelo tédio.

O processo da televisão já estava relativamente adiantado quando me chegou às mãos pois até já se sabia qual o equipamento conveniente à ligação por satélite às redes europeias e sequente transmissão de sinal à África do Sul quando a televisão fosse lançada nesse país. Faltava lançar os concursos internacionais para os fornecimentos desses equipamentos. Colocada a questão a Lisboa, foi tudo chumbado porque a RTP tinha equipamentos de que se queria livrar (obsoletos, claro) e, portanto, nós que nos contentássemos com eles. Perante o que ficámos numa de que nem queríamos acreditar no que nos estava a ser dito. Engolimos em seco e dedicámo-nos a outros assuntos. Aquele ficaria em «banho Maria», até que Lisboa repensasse o assunto. Não sei se Lisboa pensou em repensar algum pensamento porque, entretanto, foi ela própria que foi repensada pelo 25 de Abril de 1974.

No início de Março de 1974 vim a Lisboa em representação do Governo de Moçambique negociar com a Lisnave a construção de uns grandes estaleiros navais em Lourenço Marques que pudessem dar apoio aos superpetroleiros que então usavam a rota do Cabo pois o Canal de Suez continuava inoperacional. No regresso a Lourenço Marques, ao fazermos escala em Luanda, o então Comandante Chefe das Forças Armadas em Angola, General Luz Cunha, estava na base das escadas do avião para informar os ilustres a chegar (Cardeal D. Alexandre do Nascimento) ou em trânsito (um membro do Governo de Moçambique cuja identificação já não consigo fazer a esta distância no tempo) que tinha havido uma tentativa de golpe de Estado em Portugal. Referia-se ao 16 de Março, o golpe das Caldas. A Lisnave já não teve tempo para nos responder às questões que tinham ficado pendentes.

A transformação em empresa dos Serviços do Porto da Beira que eram (e são) os Estaleiros Navais da Beira ficou com o projecto de Estatutos aprovado pela minha hierarquia mas, entretanto, foi esta que mudou e eu já não estava em Moçambique quando os novos hierarcas tomaram conhecimento do assunto. Se é que tomaram.

O relançamento do Porto de Quelimane (início de dragagens mais importantes do que as rotineiras, se a memória não me falha) estava previsto para o segundo semestre de 1974.

Ora, se eu, simples membro de um gabinete «ministerial» tinha assuntos desta importância entre mãos, imagine-se o volume de projectos que todos os membros de todos os gabinetes teriam.

E o mais curioso é que a corrida do desenvolvimento não provocava cansaço. Pelo contrário, era entusiasmante.

Pena foi termos sido traídos pelas costas.

Agosto de 2019

Henrique Salles da Fonseca

 

[i] - Como se chamava por lá aos Ministérios

MOÇAMBIQUE REVISITADO – 5

- E os pretos? – perguntava o Leitor no final da crónica anterior. Ao que eu lhe perguntei sobre qual a cor desses pretos por que perguntava. E a conversa poderia ter ficado por ali se nos tivéssemos quedado pelo aparente absurdo.

- A cor dos pretos? Mas que disparate! Pretos são pretos, não têm cores.

- Pois eu acho que tanto os pretos como os brancos, os pardos e os amarelos têm cores diferentes mesmo dentro de cada raça. Um preto doutorado por uma Universidade tem uma cor diferente de um preto analfabeto mas tem a mesma cor que um branco ou um amarelo doutorados por essa ou outras Universidades.

- Mas as peles de cada um são diferentes.

- Sim, claro, mas essa é só uma questão de melanina. A pele assumir tons diferentes conforme as condições ambientais em que a pessoa se integra.

- Mas cada raça tem as suas próprias características.

- Sim, essas características são o resultado de adaptações ambientais mas o que distingue as pessoas é o nível cultural. E por esta realidade não ter sido entendida com maior generalidade e há mais tempo é que muita injustiça foi cometida e muitos sarilhos foram tecidos.

- Os pretos não são capazes de dizer duas coisas certas.

- Se lhes ensinarmos a nossa língua e os educarmos como educamos os brancos ou os indianos, eles dizem o mesmo que nós. Mais: até são capazes de dizer tudo com perspectivas diferentes porque vêm duma cultura diferente e essa diferença pode ser complementar das nossas ideias. Não necessariamente conflituantes. Esses pretos a que o Leitor se refere têm sobretudo dificuldade de expressão numa língua que nós entendemos. E por que é que nós nunca nos demos ao trabalho de aprender as línguas deles?

- Eles não percebem nada do que lhes digo.

- E ensinou-lhes a nossa língua? Ponha-se na posição inversa de serem eles a dizerem-lhe, a si, qualquer coisa na língua deles. Quem é que passava por estúpido? Portanto, não estamos a discutir inteligências mas apenas níveis culturais. E são esses níveis de cultura que definem as cores. Nos nossos almoços de economistas da região de Lourenço Marques eramos todos da mesmo cor mas pertencíamos a várias etnias ou, se quiser, a várias raças. Mas, é claro, pertencíamos todos à mesma espécie, a humana.

* * *

Em Moçambique, como em todo o espaço português, o acesso ao ensino era condicionado pelos célebres «exames de admissão» em que cada nível se dava ao luxo de desconfiar da qualidade do nível precedente. Nem sequer lhe chamo política elitista, limito-me a chamar-lhe absurda. Apesar disso, os estabelecimentos de ensino estavam cheios. Mas se não fossem as barreiras absurdas, talvez o dobro das escolas também estivesse cheio. Quem sabe? E neste particular, a realidade moçambicana não era diferente da metropolitana pois o nível de escolaridade não era o forte do Estado Novo. Se ao 25 de Abril de 1974, o analfabetismo adulto em Portugal era de 25%, não imagino o que seria em Moçambique. Felizmente, não encontrei a informação. A única coisa que posso dizer é por palpite e avanço com a ideia de que nos Liceus de Lourenço Marques havia mais alunos brancos do que pretos mas que nas Escolas Técnicas havia mais pretos do que brancos. Mas isto é mero palpite e peço a quem me lê e saiba melhor que me corrija e nos dê uma ideia mais correcta.

Escolas Técnicas? Sim, em tudo semelhantes às que havia na Metrópole. Por exemplo, Samora Machel cursou química numa delas e foi admitido nos Quadros de Pessoal do Hospital Miguel Bombarda, o hospital central e universitário de Lourenço Marques onde era Auxiliar (de 3ª classe) de Analista no Laboratório de Análises de Anatomia Patológica. Vergonhosamente preterido na promoção a 2ª classe, no dia seguinte a essa ilegalidade já não compareceu no Serviço e a vez seguinte que dele se ouviu falar foi quando assumiu a Presidência da Frelimo.

Pois é, nem tudo foram rosas.

(continua)

Agosto de 2019

Henrique Salles da Fonseca

MOÇAMBIQUE REVISITADO - 4

 

Muito antes de alguma vez me passar pela cabeça que um dia conheceria Moçambique, já sabia que em Lourenço Marques quase ninguém ia à praia por causa do matope (lodo) e porque, quando este acabava, começava o perigo do tubarão. A solução eram as piscinas. Excepção às soluções familiares, a norma era a das colectivas nos muitos clubes que foram sendo constituídos ao longo dos tempos. Assim, rapidamente, lembro-me dos maiores como, por exemplo, o «Clube Ferroviário», o dos «Velhos Colonos», do «Clube Naval», do «Grémio», do dos «Antigos Estudantes de Coimbra», do «Clube Militar». E de mais não me lembro. Submisso, aceito puxões de orelhas por algum esquecimento imperdoável. Numa dimensão muito mais modesta, o «meu» «Centro Hípico de Lourenço Marques» que então não tinha piscina (o actual «Centro Hípico de Maputo» tem piscina) mas sim picadeiro coberto. Claro está que a génese destes Clubes era a da estruturação da sociedade civil, não a da prática da natação em que as piscinas fossem parte essencial. As piscinas foram acrescentos que acabaram por ser motivo de agregação social e, desse modo, ajudaram à estruturação da sociedade civil. O mesmo se diga de outras actividades clubísticas tais como o hóquei em patins cuja equipa do Ferroviário chegou a ser campeã mundial da modalidade.

Polana.JPG

Quem não se integrasse num Clube, tinha sempre a «vala comum» que era a esplanada do Polana, essa passerelle du tout Paris. No que me disse respeito, o Clube Militar e o Centro Hípico foram muito importantes para o meu enquadramento social à chegada a Lourenço Marques.

Mas, não nos enganemos, a «vida de clube» também lá mais não era do que uma diletância. A vida séria era feita nas diversas actividades profissionais a que já me referi em crónica anterior: função publica em todas as suas vertentes desde o professorado à medicina passando pela justiça, etc., profissões liberais de que destaco a advocacia e a arquitectura, actividades empresariais públicas e privadas e, claro está, todas as profissões ligadas à actividade bancária. O turismo crescia como cogumelos, a construção civil não tinha mãos a medir, as obras públicas estendiam-se por todo o território e as sedes em Lourenço Marques fervilhavam de actividade. Naqueles tempos, o crescimento era real e o mercado de trabalho estava sôfrego. Eu sabia que, mal concluísse o serviço militar, encontraria posto de trabalho. E assim foi. A vida sorria…

A política económica era quase mercantilista: - Queres isto ou aquilo? Fabrica-o porque não terás licença de importação. E, nas aflições, não seria «gato por lebre» mas talvez «tubarão por bacalhau».

Nós, economistas residentes em Lourenço Marques e redondezas, reuníamo-nos num almoço na primeira quarta feira de cada mês e essa mais uma forma de organização da sociedade civil. Não se tratava de criar uma Ordem profissional pois isso implicaria meter o Governo Geral e o de Lisboa no assunto, para além de que era mais fácil o liberalismo do que o corporativismo. E como seria encarada tal hipótese se nem na Metrópole existia uma Ordem dos Economistas? Não seria pôr o carro moçambicano à frente dos bois metropolitanos? Estávamos muito bem assim, não quisessem alguns (poucos) estabelecer regras muito rígidas.

Foi nestes almoços que conheci dois moçambicanos que já então davam nas vistas pela ilustração: Eneias Dias Comiche que veio a ser Vice-Primeiro Ministro num Governo de Joaquim Chissano; Mário da Graça Machungo que veio a ser Primeiro Ministro também nos tempos de Chissano. Exacto, Caro Leitor, ninguém queria saber se cada um de nós era branco, preto ou às riscas. Eramos economistas e esse era o critério único de admissão no grupo. Em cada almoço havia um orador que dizia umas coisas a que alguns prestavam atenção mas o mais importante eram as conversas informais entre nós, os que estávamos na «plateia». Desde professores universitários até principiantes na profissão, havia de tudo passando por gente muito conhecedora da realidade moçambicana.

Creio que os advogados tinham também alguns encontros deste género e que os médicos se reuniam mais para temas científicos. Quem me ler e souber melhor, faça o favor de nos ensinar.

Pois é isso mesmo: uma sociedade aberta, liberal e em grande progresso.

- E os pretos? – perguntará o Leitor.

- De que côr, Caro Leitor? – pergunto eu.

Amanhã há mais.

Julho de 2019

Henrique Salles da Fonseca

MOÇAMBIQUE REVISITADO – 3

Abordados os pretos, os brancos e os mistos na crónica anterior, refiro-me agora aos grandes comerciantes em Moçambique, os indianos.

De origens e religiões diferentes, não funcionavam como um grupo homogéneo. Basta referir que uns seguiam o hinduísmo, outros eram muçulmanos sunitas e outros ainda (creio que os mais importantes) eram muçulmanos ismaelitas (do Aga Khan).

Historicamente, Moçambique foi administrado a partir de Goa desde a instituição do Vice-Reinado até ao Consulado Pombalino pelo que a influência dos indianos (v. p. ex. em «Companhia dos Mazanes») foi usada como «braço» da administração colonial portuguesa. E a vida continuou até que o caldo se entornou em 1961 com a invasão indiana do Estado Português da Índia. Então, os indianos residentes em Moçambique foram metidos em campos de concentração para daí serem expulsos perdendo todas as suas propriedades em território português… a menos que renunciassem à nacionalidade indiana. Creio que alguns, poucos, terão sido expulsos mas uma grande quantidade optou pela nacionalidade paquistanesa. Alguns optaram pela nossa nacionalidade. Não encontrei informação sobre que percentagens optaram por isto e por aquilo.

Nos meus tempos em Moçambique (Abril de 1971 – Julho de 1974) a etnia indiana ou era portuguesa ou paquistanesa; outras nacionalidades passariam despercebidas mas da indiana é que, de certeza, não eram. E todos se dedicavam ao comércio desde as ruas mais importantes de Lourenço Marques ao recanto mais afastado no mapa da savana.

Mas também estas paragens remotas atraíam alguns brancos, portugueses. Por exemplo, num desses cantos remotos da savana que ao fim de quase 50 anos já não sou capaz de localizar, encontrei um cruzamento de duas estradas naquilo a que costumamos chamar «4 caminhos» onde se localizavam, frente a frente, duas cantinas de duas famílias do norte de Portugal. Num raio de muitos quilómetros, o vazio total mas ali, à distância de não mais de 40 metros, duas cantinas que se guerreavam na mais aguerrida e absurda concorrência.

Voltando aos indianos, há que referir o facto de muitos deles se terem alcandorado aos mais altos postos da Administração Pública moçambicana tanto antes como depois da independência. Mais subiram a cargos governativos também antes e depois da dita independência.

A perspectiva religiosa é determinante em muitas circunstâncias da vida. Assim, por exemplo, consta que a Fundação Aga Khan financia sem juros (parece que o Corão proíbe a cobrança de juros num versículo que não localizei) o capital inicial para que os seus fiéis se estabeleçam economicamente mas os beneficiados ficam a pagar uma amortização anual vitalícia.

Aga Khan Maputo.jpg

A comunidade ismaelita dispõe em Lourenço Marques/Maputo de um centro cívico, religioso e administrativo de grande relevo equivalente ao que, entretanto, foi erigido em Lisboa. Comunidade laboriosa e empreendedora, nunca se ouviu dizer que os seus membros se envolvessem nas quezílias típicas de outras facções muçulmanas.

* * *

A título de curiosidade, o Príncipe Aga Khan decidiu instalar em Lisboa a sua sede mundial pelo que nós, os lisboetas, nos orgulhamos de termos connosco o «Vaticano do Aga Khan».

* * *

Voltando a Moçambique, poderia ainda falar dos chineses se deles houvesse alguma coisa de especial a dizer. Que eu saiba, não há. Primavam pela descrição e quase me apetece especular hoje sobre se esses relativamente poucos que por lá havia não seriam a «guarda avançada» para a invasão futura, quando fosse o tempo de cobrar a factura pela ajuda dada aos movimentos de guerrilha contra os portugueses. Mas isso é só especulação minha. O esbulho actual das riquezas moçambicanas por empresas chinesas é uma mera coincidência.

Feito um périplo muito genérica pela antropologia moçambicana naqueles finais da época colonial, voltamos a Lourenço Marques já na próxima edição. Até logo!

Julho de 2019

Henrique Salles da Fonseca

MOÇAMBIQUE REVISITADO – 2

Eros para elas e Freia para nós, homens. Bem procurei as divindades homólogas da mitologia moçambicana. Debalde. Aliás, sempre achei que o paganismo em Moçambique não tem vida fácil. Mas isso não deveria obstar a que se estudasse essa parte da Cultura. Para quê se já não tem expressão? Mas certamente já teve e desconfio que deixou rastos. Não deixou? Sim, deixou! Se não, donde vêm os Xiquembos? É claro que sim, a cultura moçambicana tem o seu quê de pagão com todo o misticismo e mistério inerentes. Deveria ser giríssimo estudar isso. Quanto mais não fosse para reconstituição histórica, cultura geral. Bom tema para uma Universidade da Terceira Idade. Aqui fica a sugestão.

E a pergunta é: - A que propósito vem isto aqui quando o que se pretende é uma visão do que deixou saudades e motivou a revisita?

E a resposta é: - Todos gostamos de voltar aos locais por que vogámos prazenteiros e tanto Eros como Freia foram muito bem achados na circunstância.

E quem eramos nós, os que lá vivíamos? Muitos e variados, uns daqui, outros dali, muitos de lá mesmo. Maioria castanha, não zulu que esses, sim, são mesmo pretos da cor da noite. O moçambicano é mais claro. Mas para não dizer muito disparate, fui à Internet e encontrei bastante informação. Escolhi esta que segue donde saquei o mapa que publico de seguida

https://terrasdemozambique.wordpress.com/2012/08/22/finas-misturas-de-um-povo/etnias-em-moz/

etnias-em-moçambique.png

 

Assim alijo parte da responsabilidade nos erros que alguém detecte. E eu próprio pergunto se os macondes de Cabo Delgado são macuas como o mapa dá a entender…. Venha quem saiba e nos ensine. Os moçambicanos pretos (deixemo-nos de eufemismos amaneirados) com quem contactei foram os macuas de Nampula e os landins de Lourenço Marques. Estes, seriam de várias etnias que eu associo aos xhosas mas o melhor é calar-me para ter a certeza de não dizer muitos disparates.

Os moçambicanos não pretos eram brancos, mistos, indianos e chineses.

Como já contei numa crónica anterior, não era qualquer branco de Portugal que emigrava para Moçambique só porque lhe apetecia. O Governo do Doutor Salazar não facilitava essa emigração e quem o antecedeu no mando em Lisboa também navegava pelas mesmas águas. Porquê? Não vou agora alargar-me com isso, apenas constato o facto que se traduzia numa «escolha» apertada de quem podia seguir para Moçambique. Funcionários públicos (incluindo professores), militares, funcionários superiores das «companhias majestáticas» (enquanto as houve) e técnicos da mais ampla hierarquia chamados para o exercício de funções específicas. O Zé dos Pincéis ali da esquina não era autorizado a emigrar para lá. Que fosse para Angola.

Ou seja, o branco em Moçambique ou era ele próprio membro de um escol elitista (passe o pleonasmo) ou era seu descendente. Uma parte numericamente insignificante descendia de quem, condenado na Metrópole e deportado, readquirira a liberdade ao pisar o solo africano. Mas esta «experiência» ao estilo anglo-australiana não fez escola maior por lá. O que chegou a ter algum significado foi a quantidade de militares do contingente metropolitano que decidiam passar à disponibilidade em Moçambique em vez de regressarem a Portugal. Nas «sombras verdes» de Nampula, havia muitos desses ex-militares com família mono ou poligâmica, pululante filharada mulata, tranquila existência em condições bem mais benignas do que as homólogas nas gélidas berças estaminais mais de mistura com rezes do que com gentes. Estes, assimilados, não pertenciam ao escol que há pouco referi mas foram eles que, na base social, muito contribuíram para que nós, portugueses, tendo sido os primeiros europeus a trilhar caminhos em África, fossemos os últimos a regressar às origens. Muitos, com uma mão à frente e a outra a trás.

E se a independência significou a instauração de um clima revolucionário com perseguições, exílios, campos de «reeducação» e morte, lá veio a pergunta inocente, ávida de paz: - Patrão, quando acaba independência?

(continua)

Julho de 2019

Henrique Salles da Fonseca

MOÇAMBIQUE REVISITADO - 1

 

«E porque inocentes, deixaram-se enganar por missangas contra cordões de oiro» - esta, a loa esquerdista tão em voga ainda hoje diabolizando o branco e santificando o preto. Ou seja, enchendo o branco de maldade e atribuindo ao preto um vil atestado de incapacidade mental. Racismo abjecto. E o pior é que nem sequer passa pela cabeça desses críticos que o valor atribuído pelos pretos às missangas até pudesse ser superior ao valor atribuído pelos brancos aos cordões de oiro. O que é o valor? Eis um conceito de difícil percepção por quem apenas leu Marx ignorando Adam Smith e seus sucessores.

Racismo manhoso, este que, afinal e como mostraram os acontecimentos posteriores às «independências» das colónias portuguesas, mais não queria do que precipitar a saída dos portugueses de África para que os soviéticos pudessem entrar. Sol de pouca dura, aliás, pois já saíram os soviéticos que não foram substituídos por russos. Restam alguns cubanos, soviéticos de escolha serôdia.

Esta é a hora dos chineses. Até ver…

Mas esta é também a hora do capitalismo selvagem, aquele que se entrega nas mãos dos gatunos disfarçados de políticos com a boca cheia de parangonas a favor do povo e de loas ao nacionalismo contra os colonialistas.

Exauridos, os novos Estados não existem fora da propriedade dos seus Chefes de nomenklatura reinante. Os povos, abandonados, continuam à procura da salvação no dia-a-dia. Com uma diferença muito grande em relação aos tempos anteriores às «independências»: dantes, faziam pela vida nos seus ambientes naturais; agora, depois das guerras civis, fazem-no nos ambientes de refúgio que são as «selvas urbanas» onde tudo vale, inclusivé tirar olhos. E a insegurança mudou de terrorismo para banditismo, de luta politico-militar em teatros de guerrilha rural para desordem cívica urbana, da guerra com objectivos (de algum modo) superiores para o horror do «salve-se quem puder». E os únicos que se salvam são os que puseram a mão nos cofres públicos.

E, apesar de tudo, quem conheceu Moçambique não esquece aquela terra de sonho, aquelas populações cerimoniosas, civilizadas, propensas ao bem e que, por isso mesmo, nos despertam sentimentos de compaixão.

A revisitar!

* * *

Quando a Graça, a minha mulher, me ouvia falar de África, sempre dizia que também já lá estivera porque fora num cruzeiro de Lisboa a Ceuta. Ao que eu sempre lhe respondia que Marrocos só é África no mapa que a Senhora Professora tem pendurado na parede lá da escola. A verdadeira África, a apaixonante, é a que se estende a sul do Sahara. E mais lhe dizia (e digo) que se há coisas que se mostram em fotos e vídeos, outras há que só no local se percebem.

Não preciso agora de citar muito mais coisas do que os cheiros… De náusea, dirão os narizes mais habituados aos grands boulevards de Paris. Da Natureza, digo eu e todos os que já cheiraram a savana ao pôr do Sol com uma girafa recortada pelos últimos raios, o esguicho das narinas de uma família de hipopótamos vista da margem do Limpopo ao raiar da aurorã, a macacada e sua guincharia nos ramos das árvores por cima da minha pista de equitações em Lourenço Marques, a mistura das essências expostas à porta do xitolo do monhé, o cheiro da mandioca fumegante, o cheiro da terra molhada pela chuva de pingo grosso… o cheiro da nossa própria juventude, cãs então longínquas, sangue na guelra. Esses, sim, são cheiros saudáveis, não as «eaux de vie 5 ou 10» que disfarçam sebências mal lavadas ou vícios inconfessáveis.

Girafa.jpg

Esta, uma das duas Áfricas que eu queria mostrar à Graça; a outra, seria a de Lourenço Marques que nós, portugueses, fizemos em paralelo com a cheirosa.

Março de 2006 foi quando se proporcionou mostrar-lha.

Já lá vamos…

Julho de 2019

Henrique Salles da Fonseca

POR ESSA PICADA ALÉM… - 15

Era noite escura quando acordei. Um candeeiro da iluminação pública lembrou-me que estava encostado à berma da estrada que entrava em João Belo, vindo de cima em direcção a Lourenço Marques. Se bem me lembrava das contas da véspera, faltavam 220 quilómetros para chegar ao destino. Os companheiros estavam a bordo, dormiam. Eram 2 da manhã, nem sei quantas horas dormira. Para aí umas 6. Sentado ao volante, doía-me o corpo. Apetecia-me esticar as pernas e dar um jeito às costas, para além de outra vontade de cariz físico-hidráulico. Antes de abrir a porta e sair, pareceu-me leal avisar a tripulação de que o Comandante ia sair e esticar as pernas. Acordaram com feitio de guardas monárquicos em regime republicano ou vice-versa. Saí, estiquei-me e fiz o mais que tinha a fazer, dei uma volta ao carro e verifiquei que, aparentemente, estava tudo em ordem. Em silêncio, cada um deles saiu e fez o que considerou oportuno. De volta aos nossos postos, dei a volta à chave da ignição e o mostrador da gasolina disse que não haveria mal para o andamento da viagem se tratasse de pôr a bóia mais em cima. Tudo bem, mas a estação de serviço que havia logo ali à frente tinha um letreiro a avisar que só abriria pelas 5 da manhã. Faltavam 3 horas, tempo de encostar de novo. Ninguém protestou. Fomos acordados pelas luzes fluorescentes do posto a que estávamos acostados. Fiz o pleno da gasolina e vi água e óleo. Tudo nos conformes, passei água pelos olhos. Cada um fez mais o que considerava apropriado, dei a volta à chave da ignição e aí vamos nós…

Três homens normais metidos num carro durante tanto tempo, gera cansaço. Sem nada confessarmos, estávamos desejosos de chegar ao destino e mudar de ambiente. Tudo bem, sim, mas bastava. A placa a anunciar a chegada a Lourenço Marques apareceu por volta das 7 e meia e o meu cansaço era tal que nem olhei para o lado quando passámos à porta do «meu» outro Centro Hípico à frente do qual havia uma placa de informação quilométrica a dizer que a Beira ficava a cerca de 1300 quilómetros pelas estradas de antigamente. Pelo conta-quilómetros do nosso «herói», entre viagem propriamente dita mais voltas e voltinhas, tínhamos feito qualquer coisa como 2500 quilómetros desde Nampula até à entrada de Lourenço Marques.

Foi giro, cansativo e inesquecível. Mas foi mais do que isso: foi a afirmação de que Moçambique era então uma terra pacífica na sua maior extensão em que as pessoas viviam e deixavam viver, em que o futuro se apresentava radioso se os intrusos não cobiçassem aquela terra de gente cerimoniosa e vocacionada para o bem. E foi também o tributo de três não operacionais àqueles que, em zonas de combate, sustinham o imperialismo soviético e, com o seu sacrifício, permitiam que milhões de pacíficos vivessem harmoniosamente. A esses operacionais, toda a honra desta viagem.

Podiam os moçambicanos pretos ter uma civilização diferente da minha mas eram muito civilizados. Não me canso de dizer que fui para Moçambique com um espirito civilizador e que, afinal, fui eu que muito por lá aprendi. Trouxe de lá um sentido de respeito que facilmente conduziu a uma simpatia perene, a uma predisposição de compaixão, ao reconhecimento de uma tranquilidade apenas perturbada por factores externos de que eles, moçambicanos, merecem ser apartados.

Quem verdadeiramente amar Moçambique, afaste dele os abutres externos e os piores de todos, os internos.

Entrados na cidade, dirigi-me ao Clube Militar que era onde funcionava a Messe de Oficiais. O Miguel despediu-se ali mesmo à porta porque tinha não sei quem à espera dele com o bilhete para as corridas de automóveis que se realizavam no dia seguinte ou coisa parecida; lembro-me de que o Tó, Oficial como eu, ainda entrou no Clube para tomar qualquer refresco e seguiu logo depois para casa duns primos que lá viviam; eu aboletei-me na Messe e deixei o meu «herói» descansar durante dois ou três dias.

* * *

A vida continuou para cada um de nós…

Pela minha parte, conclui a comissão de serviço militar, fui a Lisboa passar à disponibilidade e regressei a Moçambique como civil onde apanhei o 25 de Abril de 1974. Regressei a Lisboa em Agosto de 1974 depois de um «cruzeiro» de 15 dias com a namorada no “Infante D. Henrique” e trazendo o meu «herói» também ele são e salvo.

Voltei a encontrar o Miguel uns 20 e tal anos depois mas ao Tó não voltei a encontrar. A ambos desafiei para me ajudarem a contar esta história. O Miguel tem feito um ou outro comentário (muito menos do que eu tento gostaria), nomeadamente o do Xiquembo, mas do Tó não tive respostas às mensagens que tentei que a irmã lhe transmitisse.

Moçambique é terra que merece tudo de bom, não o que lhe têm feito. Que todos os Xiquembos se juntem para salvação de toda aquela terra de tão boa gente.

Passados 30 anos, voltei a Moçambique. Houve coisas de que gostei.

 

FIM

Julho de 2019

Henrique Salles da Fonseca

POR ESSA PICADA ALÉM… - 14

Para quem não conheça, explico que a Maxixe é a localidade na Estrada Nacional 1 (a longitudinal que já então vinha de Porto Amélia até Lourenço Marques e que nós vimos percorrendo desde Nampula) que se situa frente à enseada existente entre o continente e a cidade de Inhambane (a terra da boa gente como lhe chamaram os nossos navegadores primevos) localizada no quase extremo da restinga que, de Sul para Norte, forma a dita enseada.

E se Inhambane, geograficamente isolada lá na ponta da restinga, se debatia com problemas de sustentabilidade económica, a Maxixe, por sua vez, crescia a olhos vistos. E um dos motivos desse crescimento era uma Pousada (de sul africanos ou rodesianos, já não me lembro – só me lembro de que eram «bifes») que apostara no «big game fishing» (naqueles tempos, por ali, ainda não se falava de «seafary»), ou seja, a pesca grossa, nomeadamente ao espadarte, o marlin para eles, os da estranja.

É claro que apontámos à Estalagem para saber se tinham um quarto com três camas para aquela noite. É claro que não tinham. Nem com três camas, nem com duas, nem sequer com uma só. Estavam cheios e com «overbooking» (se não foi a primeira vez que ouvi a expressão, é porque me tinha esquecido de a ter ouvido antes). - E há por aí mais onde passar a noite? Duvidavam porque eles próprios tinham preenchido tudo para colmatarem o tal «overbooking». E tinham chegado a Inhambane. Não me recordo se naquela época já existia a expressão de «estarmos feitos ao bife» mas, na realidade, era o que apetecia dizer. O «bife» com que falávamos não resolveu o nosso problema.

MAXIXE-a baía, vista da estalagem.jpg

Maxixe - a baía vista da Estalagem

- E agora?

- Agora temos cerca de 500 quilómetros até Lourenço Marques.

Cá está nova ocasião em que silencio as expressões «protocolares» que os meus companheiros proferiram.

- Se formos a ver, é praticamente a mesma distância de Estremoz a Madrid.

- Sim, claro! Ou de Roma a Bari para irmos visitar o Pai Natal.

- O Pai Natal em Bari? Então, não é na Finlândia?

- Isso da Finlândia e das renas é conversa da «Coca Cola». O Pai Natal era Bispo de Mira, na actual Turquia, onde morreu e foi enterrado. Mas durante a ocupação romana foi trasladado para Bari. Mas isso agora não interessa. O que fazemos? Vamos até Lourenço Marques ou ficamos a meio caminho? – perorei eu.

- Vamos em direcção a Bari e se nos fartarmos a meio caminho, paramos e dormimos. – disse o Tó.

- Muito bem, mas há particularidades nesta «estrada para Bari». Pode não haver uma estalagem, pode não haver sequer um parque fechado ao estilo do campismo, haverá certamente campo aberto e, aí, pode haver um ou outro «leanito» ou um cornúpeto qualquer de mau feitio. A irmos, é «non stop».

A minha audiência votou por unanimidade que eu guiasse mais 500 quilómetros non stop e não bufasse sob pena de se queixarem ao Kaulza.

Verificados os níveis de satisfação do nosso «herói» e aprovisionadas algumas vitualhas para nós, os bípedes, eis-nos feitos à estrada rumo a Lourenço Marques mas passando obrigatoriamente por várias terras importantes onde eu, sem avisar, haveria de encostar a uma box qualquer que se apresentasse capaz de me deixar passar pelas brasas. Dividindo psicologicamente o esticão nos primeiros 255 quilómetros a João Belo (Xai Xai) e os 220 seguintes a Lourenço Marques, tudo se faria mais tranquilamente do que pensando numa vezada só.

Foi então que me lembrei do meu primo Luís que nasceu no Xai Xai quando o pai dele, Oficial da Marinha, ali fazia uma comissão de serviço. E lembrei-me do progresso enorme que foi para toda aquela região quando em meados dos anos 60 do séc. XX os batelões foram substituídos pela ponte sobre o Limpopo. Toda aquela região se passou a sentir como fazendo parte do progresso e não mais como uma parte esquecida do Império. E lá voltei à mesma, tudo uma manta de retalhos, sem tessitura contínua. O mesmo que estava agora a acontecer com a barragem de Cabora Bassa, isolada no meio de nenhures e que por certo demoraria muito tempo a criar riqueza de proximidade ou sequer em relação à cidade mais próxima, Tete. Felizmente, o tempo fora de algum modo vencido pela DETA, o serviço aéreo que havia agora que promover a empresa mas que, entretanto, ligava as «ilhas» que constituíam Moçambique. E lembrei-me de que, naqueles primeiros dois meses da minha comissão militar em Lourenço Marques (foi depois desse curto período que fui transferido para Nampula donde estava agora a ser retransferido) o Secretário Provincial dos Transportes e Comunicações, Eng. Vilar Queiroz, me tinha dito que, à falta de estradas operacionais ao longo do ano, o transporte aéreo era prioritário e que tudo começava pela escolha de um local próximo de uma localidade considerada prioritária onde se pudesse terraplanar uma pista. Seguia-se, à medida que ia havendo dinheiro, a compra do espaço, se fazia a terraplanagem, se consolidava o piso para a pista poder ser usada o ano todo, se construía a torre de controle, se equipava essa mesma torre, se improvisava uma protecção para os aviões que tivessem que pernoitar no local e só no fim é que se pensava, sobrando algum dinheiro, na aerogare para os passageiros.

Foi também nesse primeiro período da minha presença em Lourenço Marques que um companheiro de equitações – entretanto proprietário de algumas empresas industriais - me contou que a primeira noite que ele e a mulher dormiram em Moçambique foi na garagem do Governo Geral cujo titular (não me disse o nome) se interessou pela determinação daquele jovem casal de ficar em Moçambique em vez de seguir viagem para alguma colónia francesa na rota do navio que os trazia de Toulon. Sim, nesses idos de 50, havia uma política de obstrução à imigração de portugueses em Moçambique e só o empenho pessoal do Governador Geral foi capaz de furar essa proibição. E já que estou a referir um casal luso-francês, pergunto: «à quoi bon?».

Chagámos a João Belo um pouco antes do pôr do Sol e, sem pedir opiniões, encostei o «herói» por ali e declarei que ia descansar um pouco.

O que faço agora também neste ponto da escrita. Até logo.

Julho de 2019

Henrique Salles da Fonseca

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