Do nosso conhecimento empírico, dá para saber que, na actualidade, o líder populista emergente se opõe à democracia representativa com o intuito de a derrubar e a substituir.
O populismo estabelece uma relação directa entre as massas populares e uma liderança sem a mediação de instituições representativas como, por exemplo, os Partidos políticos tradicionais. Esse movimento faz-se mesmo contra as instituições que tradicionalmente representam as diversas correntes de opinião, os Partidos propriamente ditos, ou as que agrupam segmentos da população, os chamados «grupos de interesses». O populismo opõe-se à «sociedade civil» que representa as classes médias, opta pelo «povo anónimo» que incita contra o establishment.
Nos finais do séc. XIX ficaram célebres dois grandes movimentos populistas que foram, respectivamente, embrião da revolução russa (a chamada «via hard») e o do desenvolvimento agrário americano (a chamada «via soft»):
O populismo russo (o Narodismo) visava transferir o poder político para as comunas camponesas por meio de uma reforma agrária radical;
O populismo americano (o dos pequenos proprietários agrícolas do Far West) propunha o incentivo à pequena agricultura através da expansão da base monetária e do crédito.
Portanto, tudo laico e muito terreno, nada a ver com a espiritualidade de Cristo que por razões bem diversas também optou pelo povo contra o establishment. Poderá haver semelhanças na forma mas é óbvio que os respectivos conteúdos são tão diferentes que seria blasfémia equipará-los.
Mais: o populismo actual assume conteúdos que mais poderemos qualificar como «anticristo».
Poeta na corte de Carlos IX de França, Pierre de Ronsard nasceu em 11 de Setembro de 1524 no castelo de La Possonnière, condado de Vendôme.
Notabilizou-se como poeta da Renascença francesa sendo reconhecido como o principal representante de La Pléiade, grupo de poetas cujos principais modelos foram os líricos greco-romanos e italianos, de grande importância na renovação da literatura francesa.
Faleceu em grande depressão no dia 27 de Dezembro de 1585 (61 anos) em La Riche, França.
Da sua vasta obra, respigo um pequeno trecho:
La Parque t’a tuée et cendres tu reposes.
Pour obsèques, reçois mes larmes et mes pleurs,
Ce vase plein de lait, ce panier plein de fleurs,
Afin que, vif et mort, ton corps ne soit que roses.
PIERRE DE RONSARD
Outubro de 2018
Henrique Salles da Fonseca
BIBLIOGRAFIA:
Wikipédia
«Anthologie de la poésie française», Annie Colognat-Barès, LE LIBRE DE POCHE – Libretti, Julho de 2015
Segundo o texto bíblico, quando Jesus foi acusado pelos sacerdotes judeus perante Pôncio Pilatos, governador da Judeia, depois de o interrogar, não encontrou motivos para a condenação. Mas como o povo presente no julgamento vociferava contra o prisioneiro exigindo a crucificação, Pilatos mandou flagelá-lo e depois exibi-lo ensanguentado acreditando que a multidão se comoveria. Este, o episódio que ficou conhecido como Ecce homo, ou seja, Eis o homem.
Mas o povo não se comoveu.
Pressionado, Pilatos tentou um último recurso: mandou trazer um condenado à morte, tido como ladrão e assassino, chamado Barrabás e, valendo-se de uma suposta tradição judaica, concedeu ao povo o direito de escolher qual dos dois acusados deveria ser solto e qual deveria ser crucificado.
O povo indultou Barrabás.
Eis o populismo em todo o seu esplendor erróneo.
Para fundamentação da Democracia, convenhamos que o exemplo deixa muito a desejar mas admito que no erro então cometido na opção popular, os sacerdotes do Templo tenham tido influencia decisiva pois, claramente, temiam que «O Rei dos judeus» lhes tirasse audiência.
O mesmo se passa na actualidade com os «opinion makers» a distorcerem tudo, a manipularem todos.
E a pergunta fica: - Como seria a nossa vida se não tivéssemos tantos «xicos espertos» no meio de nós?
A aculturação das populações pelos grandes meios de comunicação a um modelo standard e globalizado corta o acesso às raízes culturais mais endógenas e isso anula qualquer ética étnica, essência da cultura mais genuína dos povos.
Uma vez desenraizadas e fidelizadas a novas «divindades» tão motivadoras como as telenovelas (e seus complementos, os telejornais), às legiões pseudo desportivas ou aos clubes políticos, as multidões deixam-se esmagar pelo stress publicitário, acreditam na demagogia partidária e sindical que as convence de que a tudo têm direito, usam e abusam do crédito que a banca lhes apresenta como se de mais um direito se tratasse, endividam-se para além dos limites do razoável e, quando menos esperam, vêem-se falidas e perseguidas pelos algozes ao serviço dos «deuses» em que foram induzidas a acreditar.
Se a todo este absurdo somarmos a mentira institucionalizada a que está na moda chamar-se a «pós-verdade» e eufemizarmos a realidade acima descrita chamando-lhe «cenário quântico», então continuaremos na fuga para a frente rumo à completa irracionalidade.
Colhe, assim, perguntarmo-nos como estaríamos agora se as multidões já se tivessem apercebido do ocaso dessa «religião» que dá pelo nome de Hedonismo e do respectivo «deus», o Prazer.
E a questão é: - Como hão-de as multidões erguer-se acima do caos e emergir à luz do Sol?
Então, a resposta é: - Pela reintrodução de significados tão antigos como o bem e o mal.
E lendo D. Manuel Clemente no seu livro “1810-1910-2010 DATAS E DESAFIOS” (pág. 121), «as coisas não são boas ou más porque Deus as mande ou as proíba; antes as manda porque são boas e as proíbe porque são más».
Ou seja, tanto o bem como o mal existem fora da discussão teológica e por isso também é possível erigirmos uma Ética laica. Não ser religioso não é, portanto, desculpa.
E onde está o mal?
O mal está no contrário do bem. Assim, basta encontrarmos o bem para que, no seu oposto, encontremos o mal.
E o que é o bem?
O bem é o que está conforme à ética e à moral sendo esta a questão dos princípios e aquela a dos factos.
A proposta laica (mas enquadrável religiosamente) que aqui endereço a todas as pessoas de boa vontade é a condição ética definida pela síntese do «eu, tu, ele»: o que é que eu quero, posso e devo fazer por ti sem o prejudicar a ele, esse terceiro que pode nem sequer ser nosso conhecido?
Uma atitude inicial que parte do voluntarismo traduzido pelo «quero», que reconhece – com mais ou menos humildade – as limitações pessoais através do «posso» e que se auto impõe o «dever»: altruísmo, humildade, sentido do dever.
E aí está ele, o contrário do bem, o mal representado pelo egoísmo, pela arrogância e pela irresponsabilidade.
Então, passando do singular ao plural na síntese do «nós, vós, eles», chegamos ao bem-comum (a que também poderemos chamar «Sentido de Estado»): o que é que nós podemos fazer por vós sem os prejudicar a eles, esses terceiros que não sabemos sequer quem são.
E assim regressamos à questão estaminal da distinção entre o bem e o mal.
Estes são temas sobre que nunca é demais pensar e sem o que nunca chegaremos ao Céu.
E foi preciso andar tanto para, afinal, regressarmos aos primórdios da Civilização?
Sim, é que, como dizia Hölderlin, o poeta atacado de mansa loucura, «somos originais porque não sabemos nada».
FIM
Henrique Salles da Fonseca
(Setembro de 2018, em Bali, frente ao caos e à ordem)
À laia de interregno, deixemos os níveis etéreos e desçamos às realidades terrenas para enquadrarmos a questão portuguesa nessa substituição do ser pelo ter.
Isso de se querer «tudo e já» conjugado com a substituição do ser pelo ter, numa economia pouco produtiva e, mesmo assim, com baixa produtividade, só pode levar ao desastre na balança comercial, na de transacções correntes e mesmo na de pagamentos. Daí à falência perante o exterior foi um passo (como todos sabemos por experiência colectiva própria) e não houve turismo nem remessas de emigrantes que na crise suprema conseguissem tapar o buraco. Tivemos mesmo que pedir ajuda aos credores e passar por todas as restrições que tanto doeram.
E, atenção, não refiro a apropriação indevida de bens e liquidezes que por aí campeou; apenas refiro a falta de capacidade da oferta interna para suprir o consumo também interno. Quando a produção interna é restringida por inúmeros factores (custos de contexto, opacidade dos mercados, vícios na formação dos preços) e o consumo é incentivado, só o cenário da catástrofe se afigura como plausível.
Então, não serão necessárias muitas mais explicações para se compreender que «quem não trabuca, não manduca» e que o verdadeiro motor do desenvolvimento não é o consumo mas sim a produção dos bens transacionáveis que todos tanto gostamos de consumir. Quase diria que Colbert deveria ser desenterrado para nos impor o seu mercantilismo durante uns tempos. E digo impor porque «às boas» não iremos lá. Lá, onde? À racionalidade da auto-sustentabilidade pela via da produção e da competitividade.
E aqui, trago um excerto de um escrito de Francisco Gomes de Amorim no qual se refere à podridão:
O Brasil bateu todos os recordes do mundo em ladroagem e corrupção, tem uma classe política com uma abissal falta de educação, cultura, ética, classe e conhecimentos, mas continua a ser um lugar meio mítico com o seu carnaval, as suas praias e as suas gentes, sempre amáveis.
Corrupção houve desde sempre, sempre. Lembremos só o Bezerro de Ouro, a ter-se passado foi há mais de 3.500 anos, os 30 dinheiros que o pobre Judas recebeu, os presentes que davam a Khrushchov quando premier dum mundo eufemisticamente chamado comunista, o governo do general Grant no EUA, considerado o mais corrupto de toda a história daquele país (incluindo Bush) e centenas, milhares de outros, entre eles o Príncipe Bernardo da Holanda que recebeu mais de um milhão de dólares para que usasse sua influência junto ao governo neerlandês na aquisição de aviões de combate americanos!
Olhemos à nossa volta e meditemos. Mas não olhemos de mais para não cegarmos com tanta vergonha nem meditemos de mais para não ensandecermos ou entrarmos em curto circuito neurológico.
Ponto final no interlúdio terreno, regressemos à elevação.
O último dia da nossa presença em Bali foi livre de programas pré-estabelecidos pelo que cada um fez o que muito bem lhe apeteceu. A todos apeteceu praia de manhã, almoço no hotel e piscina à tarde. Eu aproveitei a folga de compromissos para fazer uma «massage». E não fique o leitor a pensar em coisas especiais porque o que eu queria – e tive – foi uma massagem dos joelhos para baixo pois andam os artelhos a doer-me sempre que ando um pouco mais do que eles, artelhos, querem que eu ande. E o resultado foi o de ter ficado com os sapatos a dançar nos pés (a activação da circulação de retorno foi eficaz) mas quanto à dor nos artelhos com o forçar da andadura… vou ali e já venho. Talvez que se perder uns quilitos, a «coisa» melhore. A ver…
Esta coxeira é para ser solidário com a minha égua «Lola» que a dormir deu um jeito tal na perna direita que esteve coxa durante quase 15 dias. Ela já está boa, eu não.
Regressando a Bali e à praia do hotel, reconheço que é muito boa mas quem, como eu, está habituado à praia do Barril, em Tavira, fica com a certeza de que a motivação «praística» não justifica que um português voe meio planeta. Mas fomos lá por todos os motivos que já constam destas crónicas e que justificaram plenamente a viagem.
Só que, se houvesse menos azáfama por todo o lado em que andámos e se não houvesse engarrafamentos de trânsito, eu admitiria que ali fosse o paraíso mas… foi-o por certo há 50 anos como disse a minha amiga. Hoje, tem uma gente encantadora, paisagens muito bonitas, oferece qualidade de vida. Mas eu creio que o paraíso exige algo mais que não sei ao certo definir.
Foi, entretanto, hora de jantar cedo para irmos apanhar o avião que nos levaria ao Dubai seguido de outro que nos levaria a Lisboa. Voos sem história, tudo normal. No ar, não sentimos mais um tremor de terra que ocorreu numa ilha indonésia mais perto de Bali do que os anteriores e seus tsunamis. Foi já no Dubai que soubemos disso.
Para fechar estas croniquetas, uma nota de pé de página sobre o que me passa pela cabeça quando sobrevoo o Norte de África.
De cá para lá (Lisboa-Dubai), sobre Cartago, sempre me lembro de Aníbal e, quando chegamos à Argélia, lembro-me sempre de Santo Agostinho, da sua célebre frase «não basta fazer coisas boas - é preciso fazê-las bem» e da sua Hipona que hoje se chama Annaba (que também sobrevoamos).
Annaba, a ex-Hipona de Santo Agostinho
Mas de lá para cá, precisamente o mesmo percurso mas em sentido inverso, lembro-me sempre de Manuel Teixeira Gomes. Porquê? Aqui deixo a sugestão de estudo para quem me lê.
E por aqui me fico com estes mistérios das circunvoluções cerebrais que para lá me fazem lembrar de uns e para cá de outro.
Et ita concludit trinus
Henrique Salles da Fonseca
(Java, Candi Mendut, junto à única estátua de Buda sentado à moda ocidental)
Foi há quase 50 anos que uma amiga me disse «Oh Henrique, Bali é o verdadeiro paraíso na Terra!». E eu disse a mim mesmo que não haveria de ir para o Paraíso celestial sem antes visitar o paraíso terreno. E fui!
À semelhança do que sucede com o Paraíso celestial, a Bali também se chega pelo ar mas, neste caso, num voo comercial, de preferência vestido à moda dos turistas e não numa nuvem envergando uma túnica branca com direito a auréola nem asindo uma lira das de oito cordas. Diferenças menores, portanto…
Chegados ao paraíso, fomos de imediato levados para o hotel e logo à entrada fiquei boquiaberto com a grandeza, a beleza, o requinte. Lembrei-me de que Luís XIV haveria de gostar. E, já que me lembrei dele, então fiquei «bouche bée».
Lobby do hotel Ayodya, em Bali
Sala para apresentações de dança balinesa no hotel Ayodya
Gostei de constatar que o paraíso é luxuoso e não austero como os puritanos apregoam.
No dia seguinte fomos logo de manhã levados a ver um espectáculo de teatro dançado e quase nada falado. Ainda bem que não se esforçaram muito com as falas e respectivas «deixas» pois nós, a multidão de espectadores, não haveríamos de perceber patavina. Com a mímica percebemos tudo, ou seja, a eterna quezília entre o bem e o mal e a tentativa de estabelecer um certo equilíbrio entre o caos e a ordem.
Contando com um dos espectáculos de mímica mas fabulosos que alguma vez vi, em Cochim (com tema muito semelhante, aliás), este também mereceu todos os aplausos que lhe demos no final. E qual não foi a nossa agradável surpresa quando ao jantar desse mesmo dia tivemos um espectáculo-resumo privativo no teatro do nosso hotel com direito a confraternização com o elenco. Mas este espectáculo privativo teve a participação de um coro que não actuara de manhã e que viemos a saber constituir, por si próprio, um ex-libris da cultura balinesa. Trata-se do Kecak Dance e não resisto a ir ao YouTube buscar um vídeo para que os meus leitores também possam apreciar algo muito diferente do que estamos habituados:
De Lisboa ao Dubai são as tais 8 horas aproximadas de voo já nossas conhecidas e dali a Jakarta são praticamente outras tantas. Se a isso somarmos o tempo de espera (quase 3 horas) no aeroporto de escala, dá para perceber que chegámos ao destino com alguma vontade de descanso. O que fizemos com alguma rapidez no hotel muito bom que a nossa agência de viagens escolheu.
E que cidade se nos deparou?
Avenidas largas, prédios altos (lembrei-me de uma torre que nos tempos de Sukarno ficou a meio por falta de financiamento), casas baixas, trânsito muito intenso mas não caótico, belo porque automóvel, enxames de motorizadas mas não tanto como no Vietname. Asseio, asseio, asseio - tanto como em Lisboa ou qualquer outra cidade com preocupações de higiene urbana.
Os muezzins a exalarem aqueles decibéis megafónicos que os residentes já nem sequer devem notar mas que a nós, forasteiros, faz pensar como é bom não viver perto de tanto proselitismo religioso. Proselitismo, fanatismo ou tentativa de retoma de domínio duma sociedade que lhe escapa cada vez mais?
Mulheres com véu, sim, mas nada de burkas nem outros vexames. Ficámos a saber que há cada vez mais mulheres a manterem a religião como pano de fundo civilizacional mas que se recusam a ficar em casa, que trabalham e que têm a sua independência. Os misóginos daquelas paragens não devem andar tão satisfeitos como parece andarem os das Arábias. A mulher indonésia estuda em igualdade de circunstâncias com os homens ou talvez mesmo mais, à semelhança do que acontece por cá em que há mais alunas que alunos.
Eu digo habitualmente que a revolução muçulmana será feminina ou não será e creio que esse processo de emancipação já começou em Java. Não será uma revolução com espingardas e barricadas mas é uma revolução na mesma.
Quanto às outras religiões ali presentes, se bem que minoritárias, não se escondem e não incomodam os passantes.
Um apontamento final em «economês»: no final de 2017, o PIB per capita português era de US$ 23.116,58 e o indonésio era de US$ 4.130,66; um Euro valia agora 17.391,00 Rupias Indonésias.
(continua)
Henrique Salles da Fonseca
(algo impressionado com os odores do mercado chinês de Jakarta)
Ainda hoje se refere Sukarno (militar, natural de Surabaia onde nasceu a 6 de Junho de 1901 e falecido em Jakarta a 21 de Junho de 1970 por deficiências renais) como «o nosso primeiro Presidente»; a Suharto, também militar, referem-se como «o nosso segundo Presidente» e, dando um salto sobre alguns que quase entraram no esquecimento, se passa para «o nosso Presidente» que é o actual, Joko Widodo, cujo mandato quinquenal está a terminar mas que se recandidata a um segundo (e último) mandato. Parece ser o único que não enriqueceu e que, só por isso, se diz merecer ganhar novamente.
Do meio do esquecimento salta por vezes a única mulher que até hoje presidiu à Indonésia, Megawati Sukarnoputri cujo nome significa «Megawati, filha de Sukarno». E ela foi Presidenta porque era Vice-Presidenta de Abdurrahman Wahid que foi «impeachado», não concluindo o mandato. Ela cumpriu o resto do mandato mas foi derrotada na votação seguinte. A curiosidade está em que o actual Presidente é membro do Partido dela (PDI-P, ou seja, a sigla indonésia para «Indonesian Democratic Party of Struggle») em que, pelos vistos, ela continua «fora da carroça». Porquê? Diz-se – com mais ou menos cerimónia e com mais ou menos acrimónia – que por incompetência pura.
Creio que a situação política actual é estável mas, tal como sucede em qualquer parte do mundo, tudo se pode embrulhar sem aviso prévio como já sucedeu várias vezes ao longo da História.
Há elementos importantes que justificam a estabilidade e deles refiro apenas alguns:
A política económica de «viver e deixar viver» aquela enorme população muito mais empreendedora do que proletária;
Algum nacionalismo que, não afugentando o investimento externo, não permite muita roubalheira dos recursos naturais;
Uma política de distribuição geográfica de obras públicas ao contrário do que sucedeu durante os mandatos presidenciais anteriores de grande concentração de interesses em Java e escandaloso esquecimento do resto;
Total liberdade religiosa dentre as cinco religiões reconhecidas pelo Estado laico [Islamismo (maioritário), Hinduísmo, Budismo, Cristianismo (católico e protestante), Confucionismo];
Agricultura completamente privada e formação de preços com mais lógica do que em Portugal;
Educação e Saúde gratuitas - em paralelo com as privadas nos complementos que todos adivinhamos…
Militares fora da política e dentro dos quartéis a fazerem aquilo para que existem, a segurança.
A lista poderia ser muito maior mas fico-me por aqui pois não estou numa de fazer um relatório chato.
Uma particularidade que me pareceu muito interessante e nos foi referida várias vezes: a facilidade de crédito para a compra de motorizadas.
E que tal falar sobre Timor e a crispação das relações com Portugal? Já lá vamos no capítulo seguinte.
Tenha o Leitor a bondade de não me levar a mal o título deste escrito e da sua repetição nos prolongamentos que se lhe seguirão já que em indonésio, a nossa tão cara «Liberdade» se diz «Merdeka». Sim, é óbvio que, apesar da nossa grande influência naquelas paragens, os indonésios não nos terão pedido opinião quando quiseram dar um nome à liberdade.
E até que ponto existe influência portuguesa naquelas paragens?
Sim, existe uma influência real que se iniciou no início do séc. XVI e se prolonga até hoje pois, com o interregno relativo à tentativa portuguesa de instalação de um regime comunista em Timor-Leste, tudo o mais na História se traduziu por um ambiente de relações calmas e bilateralmente proveitosas.
E então, foi assim:
Em 1513, quatro navios portugueses chegaram a Kalapa[i] (ilha de Java), o porto principal do reino hindu de Sunda. Vinham de Malaca, conquistada havia dois anos, à procura de especiarias, principalmente de pimenta. As relações de comércio desenvolveram-se com normalidade e no dia 21 de Agosto de 1522 foi firmado um Tratado de Amizade entre Sunda e Portugal.
Contudo, em 1527 Kalapa foi assaltada e destruída por Fatahilaha Kahn, muçulmano, que era inimigo tanto do Rei de Sunda como dos portugueses.
Reconstruída pelos conquistadores, a cidade recebeu o nome do terceiro Sultão do Sultanato de Banten, Pangeran Sungrasa Jayawikarta III, abreviadamente Jakarta. E se os religiosos e militares portugueses saíram, os nossos comerciantes voltaram a frequentar o novo burgo e suas cercanias com grande utilidade para todos, vendedores e compradores das especiarias que por ali abundavam.
O prestígio de Portugal (leia-se utilidade comercial e militar) e a influência religiosa eram tantos naquela região que em 1573 o Sultão de Ternate (Molucas) doou toda a ilha de Amboíno ao seu padrinho de baptismo, Jordão de Freitas, indo morrer a Malaca não sem antes ter deixado em testamento todo o reino de Ternate ao Rei de Portugal. Contudo, D. António de Noronha, Vice-rei da Índia, terá entendido que seria mais útil um fantoche no trono de Ternate que seguisse docilmente as orientações portuguesas do que assumir directamente os constantes conflitos na região pelo que não aceitou a doação e instalou Hairum, irmão do Sultão defunto, no trono que estava de facto vago. E parece que a decisão foi acertada pois o novo Sultão seguiu o exemplo do seu irmão e antecessor consolidando a amizade com os portugueses a quem convidou em 1578 para construírem uma fortaleza. E o comércio continuou...
Mas o Sol não foi doirado por muito mais tempo para nós pois, entre espanhóis e holandeses, o «destino» quis que saíssemos em 1605 dessas paragens. Saímos oficialmente mas ficámos escondidos dos calvinistas.
Foi em 1610 que o general holandês Pedro Bothe fundou Batávia para apagar a antiga Jakarta sendo necessário esperar pela total independência da Indonésia em 1949 para que o nome holandês desaparecesse e Jakarta retomasse o seu lugar nos mapas.
Mas os holandeses não conseguiram apagar-nos por completo pois permanecem vestígios significativos um pouco por todo o lado. Por exemplo, na ilha das Flores a norte de Timor, ainda hoje a fórmula de proclamação dos rajás de Sikka reza que:
Viva Altíssimo Senjor Don [nome do empossado que não há muito tempo foi Alexius Ximenes da Silva], sei boa saudi, El Quam Deos Nossa Senjor dê longa vida permanosa El-Rei reinjho de Sikka. De baixo de Lisboa.
Esta última expressão “De baixo de Lisboa” significa que, mesmo decorridos tantos séculos, os rajás de Sikka se consideram súbditos do Rei ou Presidente de Portugal. Eles ainda hoje nos tratam assim e nós, esquecidos, que fazemos por eles?
(continua)
Henrique Salles da Fonseca
(em Jakarta, SET18)
[i] - Não confundir com «kapala» que significa «cabeça».