Os meus leitores sabem perfeitamente o que foi a Liga Hanseática pelo que não se justifica eu vir aqui «ensinar o “Pai Nosso” ao Vigário» mas, mesmo assim, permito-me sugerir uma visita à Wikipédia a quem queira refrescar a memória. E refiro a dita Liga porque Hamburgo foi uma das suas principais cidades e porque ao longo da nossa viagem visitaríamos outras cidades hanseáticas.
O nome oficial da cidade é «Frei Hansastadt Hamburg» que traduzo por «cidade hanseática livre de Hamburgo». E porquê livre? Porque sempre se valeu por si própria, nunca pertenceu a um Principado ou «coisa» do género e ainda hoje está entre dois Estados da Federação mas não se integra em nenhum deles. Tanto quanto consegui apurar, tem representação autónoma a nível federal.
O binómio cidade<>porto (fluvial) é, como manda o conceito, indissociável e se a cidade é importante por si própria, a actividade portuária dá serventia a uma das regiões económicas mais desenvolvidas a nível mundial.
E assim foi que nos levaram por ali fora… até ao MSC «Magnifica» que estava ali todo vaidoso a exibir a sua imponente magnificência.
São «só» 95 mil toneladas de navio e mais não digo pois a Internet diz tudo, Apenas confesso que, quando lhe vi a proa – que é por onde os barcos falam – fiquei «bouche bée».
Gostei da decoração interior e fizemos o «check in» ao som de um duo ao vivo de piano e violino que nos recebeu com o «Canon» de Pachelbel, com a «Avé Maria» de Schubert e com outras suavidades que não identifiquei.
Camarote no deck 11, a bombordo, deu para nos instalarmos nas cadeiras de palhinha da varanda e irmos vendo aqueles cem quilómetros da margem esquerda do Elba até à foz. Já fora da malha urbana e industrial, uma floresta ornamentada por mansões de quem é tributado pelos escalões mais altos.
E foi a pensar na lógica e na justiça da fiscalidade directa que, já noite, nos fizemos ao Mar do Norte que nos recebeu chão.
Ainda não tínhamos recolhido as malas no aeroporto de Hamburgo e já eu me lembrava de Lutero que disse que «a salvação se consegue pelo trabalho» (Deus não quer madraços no Céu), de Kant cujo «imperativo categórico» afirma que toda a gente tem a obrigação ética de contribuir para o bem-comum do seu grupo social, da sua Nação e lembrei-me também de Max Weber (o «pai» da Sociologia) que pegou naqueles ditames e, conjugando-os, escreveu um livro que tenho por fundamental para se perceber os alemães, «A ética protestante e o espírito do capitalismo». Os meus leitores sabem perfeitamente conjugar estas três referências, prescindem de explicações. Lembrei-me também dos resultados obtidos por políticas benignas quando aplicadas a uma parte dessa Nação quando comparados com os homólogos resultantes da aplicação de políticas malignas à outra parte.
E assim foi que, sem saber exactamente por onde nos levavam, almoçámos numa margem do rio Auster por ali canalizado entre prédios de afável compostura.
Depois do almoço fomos dar uma volta pela cidade (que não reconheci de quando lá fui em 1959 e em 1961) e visitámos a Igreja de S. Miguel.
Um espanto, caiu-me o queixo!
Relativamente modesta por fora mas magnífica por dentro com sete órgãos de tubos (cinco visíveis e dois em segundo plano); como igreja luterana, ali apenas se veneram Deus e Jesus Cristo pelo que nem Nossa Senhora é venerada – total ausência de iconografia. Mas se disto eu já esperava, o meu espanto teve a ver, obviamente, com o que eu não esperava: na cripta repousa «apenas» Georg Friedrich Telemann, Carl Emmanuel Bach e Johannes Brahms. Caramba, um ptotopanteão da música alemã!
Mas o que mais me espantou foi aquela igreja ter como orago o «nosso» Arcanjo S. Miguel, o Protector de Portugal.
Duvido que os frequentadores habituais daquela igreja conheçam a história de S. Miguel mas daqui lhes agradeço a simpática devoção.
Nos tempos megalíticos em que ao nosso território, Portugal, se chamava Ofiuza (a terra da serpente, símbolo da sabedoria), a cultura druídica instituiu a veneração a Endovélico cujo culto perdurou até aos tempos de Viriato. Com a chegada dos romanos, o deus Endovélico foi redenominado Zéfiro e com a cristianização, àquele espírito foi reconhecido o estatuto de Arcanjo sendo então denominado Miguel. Eis a história de S. Miguel Arcanjo a cuja protecção Portugal se guarda.
Mas esta crónica já vai longa e, assim, por aqui me fico. Amanhã há mais…
«ACH…!!!» e «BUFFF…!!!» - eis duas expressões que os franceses usam a esmo já mesmo sem saberem porquê. Mas, na origem, ambas expressam o enfado (para dentro) e o desprezo (para fora) de terem que ouvir estupidezes quando ditas em surdina ou de modo mais veemente se o «ofendido» sentir que lhe estão a coarctar os seus sacrossantos e inalienáveis direitos. A este tipo de expressões (que nem sei se se podem classificar como omanotopaicas) eu chamo grunhidos.
Então, a institucionalização do grunhido como instrumento verbal de comunicação humana, começou com a queda dos Valores religiosos e, daí, a queda dos correlativos Valores morais – tardou a implementação da Moral Laica (Republicana); queda dos Valores Éticos de inspiração religiosa – deficiente implementação de um Código de Ética Republicana com prevalência dos Direitos e algum esbatimento dos Deveres de Cidadania, assumpção do «carpe diem» com voracidade.
Eis o pós-modernismo exaustivamente dissecado por Gilles Lipowetsky, eis o urbano-comprimido amoral, aético, associal, o titular de todos os direitos a quem tudo é devido e que bufa constantemente desprezíveis «BACHs…!!!» e «BUFFFs…!!!».
Foi esta a França que NÃO vi!
Perguntados, o Senhor Cheminot e a Senhora Cheminée apressaram-se a dizer que isso é o que acontece na região de Paris. O resto de França continua em paz consigo própria, as pessoas são cordatas, a vida flui docemente…
Nas viagens todas que já fiz de Cacilhas a Xangai passando pelo Cabo Horn e por Alotau no extremo leste da Papua Nova Guiné, estive em muitos lugares surpreendentes mas houve dois que me mereceram atenção especial e onde a mostarda me chegou ao nariz. Refiro-me ao Cabo Comorim, o extremo sul da Índia e ao Lorelei, no Reno.
A solenidade que a epifania desses locais me inspirava estava a ser grosseiramente prejudicada por ruidosos grupos de viajantes que desconheciam totalmente o que visitavam e assim foi que dei dois berros, provoquei o silêncio e expliquei tudo o que sabia. Em ambas as ocasiões choveram agradecimentos e pedidos de desculpas pelas algazarras anteriores.
No Cabo Comorim, para além da confluência do Mar de Omã com o Golfo de Bengala, chamei a atenção em inglês a um grupo que me pareceu sul-africano para a imponência da estátua ao Deus Aurobindo, figura de grande relevo no hinduísmo e, daí, aquele ser local importante de peregrinação – e os basbaques, atónitos, miravam o promontório enorme…; no Lorelei, com a música mais célebre do tema local a encher de nostalgia o barco do nosso cruzeiro, expliquei em castelhano ao grupo catalão que aquele é um local importante da mitologia germânica com a valquíria a dialogar com Wotan lá no alto do promontório e blá-blá-blá…, a música que estávamos a ouvir era de Schubert, a letra de Heinrich Heine e que Robert Schumann se despencara fatalmente daquele rochedo.
As ovações taparam a música e tudo passou com grande glória para a minha sabedoria.
Mas… não era bem assim. Melhor direi que quase nada era assim. Felizmente, não voltei a encontrar quem me confrontasse com tanta involuntária fantasia resultante de tão vasta falsa cultura.
Então, no Cabo Comorim só acertei na geografia e tudo o mais passa a ser muito mais profano pois a estátua enorme é de Tiruvalluvar, o filósofo tamil e o outro memorial é ao filósofo bengali Swami Vivekananda que nos finais do séc. XIX representou o hinduísmo em Chicago no Parlamento Mundial de Religiões. Quando uma parte das cinzas de Gandhi ali foi espalhada, já o local era de peregrinação hindu. Ainda não sei porquê mas voltarei aqui quando souber.
Quanto ao Lorelei, a mística do local resulta de o penhasco provocar no Reno uma curva em cotovelo cujos turbilhões provocaram muitas tragédias desde que o homem decidiu navegar ali. Mas o local tem imponência e espíritos mais românticos (Heinrich Heine, por exemplo) inventaram a história duma bela pastora que ali penteava os seus cabelos doirados e blá-blá-blá… E, vai daí, os alemães do solfejo entretiveram-se a compor lieder para a letra do Heine. Encontrei muitas dessas músicas no YouTube, a mais célebre é de um compositor cujo nome esqueci e não encontrei nenhuma de Schubert. Quanto a Schumann, se alguma vez ali foi, nada encontrei que registasse o passeio ao Lorelei. Encontrei, isso sim, que se atirou duma ponte sobre o Reno em Düsseldorf, que um barqueiro lhe deitou a mão e que dali foi para um hospício psiquiátrico nos arredores de Bonn onde morreu anos mais tarde.
E a minha pergunta é: - onde é que eu fui desencantar tanta falsa informação que involuntariamente impingi aos meus «colegas» turistas?
E se algum desses meus «colegas» foi estudar as lições, há-de concluir que anda por aí muita falsa informação turística.
Que esta correcção voluntária sirva para a remissão daqueles pecadilhos involuntários.
Recomendo, pois, que não nos fiemos no que nos contam enquanto passeamos pois anda por aí muito gato a fazer-se passar por lebre.
Contudo, se as minhas versões eram falsas, elas eram muito mais bonitas do que as insípidas verdadeiras - e fui eu que saquei aplausos, contei às pessoas o que elas queriam ouvir, fui demagogo, pareci político em campanha a sacar os votos dos inocentes.
Vão-se os anéis mas fiquem os dedos. Prescindimos das excursões e de mais uns dias de hotel mas conseguimos antecipar o regresso: de início, previsto para 22 de Março, antecipado pela própria companhia aérea para 21 e, finalmente, antecipado pela nossa agência de viagens em Lisboa para 18.
Mas como nestes tempos que correm, o que é verdade agora pode não o ser amanhã, só acreditávamos que viríamos no dia 18 depois de sentirmos os motores do avião a trabalhar. Significaria isso que tinha sido dada autorização para aterrarmos no destino, Madrid. Portanto, na dúvida, fui informando a nossa Embaixada no México de que, eventualmente, poderíamos vir a necessitar de ajuda oficial para o repatriamento. Tudo correu como desejávamos e não foi necessário incomodar a Embaixada.
Vôo sem história aeronáutica – apenas uns ligeiros tremeliques horizontais – mas em que apenas foi servido o jantar; quem quisesse pequeno almoço, que o pagasse.
Pesado, o ambiente a bordo: silêncio de quem não sabia o que iria encontrar no destino; parecia um vôo de resgate de refugiados, a evacuação de sobreviventes de um cataclismo. Nós os quatro sabíamos que tínhamos um carro à nossa espera numa determinada empresa de aluguer de automóveis em Barajas. Mais: carro com matrícula portuguesa para facilitar a passagem da fronteira no Caia, com capacidade para quatro adultos que gostam de comodidade e bagageira capaz de conter oito malas. Aluguer sem condutor, eu sem visão para poder guiar, o Pepe, mal dormido no avião, teve que alinhar com mais seis horas ao volante. Heróico!
Autoestrada contínua de Barajas a Lisboa, diziam-nos que haveria controlos policiais cada 10 kms e que no Caia a fronteira fechava às 8 da noite para só reabrir às 6 da manhã com fila interminável. Tudo mentira, tenho por terroristas as pessoas que lançam essas atoardas. Pouco trânsito de pesados e menos ainda de ligeiros, não houve um único controlo policial, no Caia não havia qualquer fila, exibimos os passaportes através dos vidros fechados e, sem delongas e com uma certa cordialidade, fomos mandados entrar no nosso país. Viemos a saber que a fronteira está aberta 24 horas por dia. Eram quase 7 da tarde do dia 19 de Março quando metemos a chave à porta de casa.
Para desgosto dos dependentes das negatofinas (as endorfinas negativas) que, sob a capa da amizade e da protecção, fazem a vida dos mais sensíveis num inferno, chegámos sem dramas nem outro constrangimento que não o cansaço físico, não psíquico.
Como dizem os franceses, «tout va bien quando fini bien».
Mármore branco e luzidio por tudo quanto era chão e paredes naquela bela aerogare de Cancún. Encaminhados para a fila dos guichets da Polícia de Fronteiras, a Bandeira Nacional Mexicana panda no seu pau encimado por seta doirada. Grande dignidade merecedora da admiração dos forasteiros - neste caso, eu. Verificados e carimbados os passaportes, a agente à paisana a dar-nos as bienvenidas. Cinco estrelas.
Contraste absoluto com a agente fardada e de máscara que rudemente nos verificou os passaportes à entrada do Panamá. Desculpei-a porque admiti que o marido dela se tivesse portado mal na véspera. Ou porque nem sequer tivesse marido.
Esperava-nos um mexicano baixote que se apresentou como José e nos conduziu a uma carrinha – quatro adultos habituados a mordomias e oito malas não se metem numa carripana qualquer - que cheirava a limpo. Bom piso nos 30 ou 40 kms até Playa del Carmen. O guarda da cerca exterior do hotel não estava informado da nossa chegada senão para daí a dois dias, não nos deixava entrar. Barafustámos, ameaçámos com a ira divina, apregoámos o cancelamento das reservas futuras e o Fulano que estava do outro lado da comunicação do guarda lá deu licença para que entrássemos. Afinal, esse mini-déspota, tiranete, eunuco de harém, era um atabalhoado que não era capaz de fazer o nosso check-in e fomos nós (mais uma vez, a Graça e o Pepe) a fazerem tudo. O José da carrinha não nos abandonou enquanto não teve a certeza de que estávamos em segurança. De caminho para os quartos já por horas nada cristãs, o recepcionista estendeu-me a mão num gesto de boas-vindas. Mão gorda, saposa. Devem ser assim as mãos dos guardas dos haréns.
Arquitectura e decoração sumptuosas, só tínhamos por ambição verificar tudo isso no dia seguinte. Para já, cama.
Luxo, luxo, luxo.
O programa das festas era a permanência de uma semana com três excursões mas tudo saiu truncado por estarmos a assistir ao encerramento sucessivo dos espaços aéreos e a corrermos o risco de ficarmos retidos no México sem ligações a casa. Aliás, a própria companhia aérea se encarregou de antecipar o vôo e nós fizemos apenas uma excursão. Mas os outros dias foram muito bons: uma dúzia de restaurantes dentro do hotel para que pudéssemos escolher à vontade no regime de tudo incluído. Para quem este regime é novidade, a exuberância dos consumos é notória; para quem está habituado (nós), a moderação é a norma. Quarto sobranceiro à piscina e a curtíssima distância da praia; baía fechada por rede anti-dentuças, os primos do cação da nossa sopa; água a condizer com as nossas expectativas – entrada afoita; comes ligeiros e bebes tanto inocentes como hard servidos à descrição com água pelo pescoço ou à sombra de alguma palapa. Aquela não é mas poderia ser a «praia do nababo».
Excursão interessante de um dia inteiro por local arqueológico (Tulum) e piramidal (Cobá). Mas, mais do que o campus arqueológico (não tive pernas que lá me levassem) e as pirâmides, interessou-me mais o que se passa actualmente com a Civilização Maya. Tanto quanto o homem do rickshaw que nos levou às pirâmides contou, em casa falam a língua maya mas na escola só aprendem castelhano; aprendem História maya mas nada mais. Concluo (talvez abusivamente) que o Estado Mexicano tem medo da Civilização Maya e do que algum revivalismo possa significar para a integridade nacional - já lhes chega Chiapas.
Entretanto, as notícias que nos chegavam da Europa e, mais concretamente, de Espanha, eram aterradoras. Estava (e ainda está, no momento em que escrevo estas linhas) em curso uma verdadeira chacina. Havia que apressar o regresso antes que o colapso nos impedisse de voltar a ver as famílias e os amigos.
Ondas como as do Lago de Genève. Fazendo horas para o jantar, a Graça e eu estávamos na varanda do camarote a ver o Sol a caminho da noite e olhávamos para nenhures. O que se espera ver num mar que parece infinito e plano? Um tsunami que nos vire de borco? Não! Talvez se veja uns golfinhos, umas baleias, um navegador solitário ou uns náufragos… Nada disso. A novidade não estava no mar, tinha sido posta num papel por baixo da porta do camarote.
Era uma comunicação formal de alguém colocado na hierarquia determinante do navio a informar que aportaríamos a Colón na manhã seguinte pelas 7 horas e que seríamos todos metidos em autocarros e escoltados até ao aeroporto de Panamá City. Que tratássemos de mudar de vida. E que, como com o bode a ser ordenhado, não haveria ménem meio mé.
O nosso programa de festas previa desembarcarmos, termos um carro à nossa espera para nos levar ao hotel em Panamá City onde ficaríamos mais dois dias a ver o que por lá houvesse de interessante e, então e só então, voarmos para Cancún, no México. Nada disso, seríamos escoltados até ao aeroporto e dali não poderíamos sair a não ser por uma porta de embarque para um avião que nos tirasse para fora do Panamá. No Panamá é que não podíamos ficar. Escorraçados como um bando de mal-cheirosos. E mais: o problema não era apenas connosco, os quatro portugueses, era com todos os passageiros do navio com desembarque previsto em Colón, «apenas» cerca de 850 pessoas. Se a esta multidão somarmos os tripulantes não panamianos em fim de contrato que também desembarcariam, tratar-se-ia de cerca de mil pessoas à deriva, sem solução muito diferente da de terem (termos) que dormir espojados no chão do aeroporto. Estariam 16 autocarros à nossa espera no cais e seríamos escoltados pela Polícia. E que desamparássemos a loja, neste caso, o navio. À saída, haveria uma equipa médica que nos mediria a temperatura: se apiréticos, tudo bem; se febris, não nos disseram onde estaria a máquina de picar carne para de seguida mandarem os restos para o crematório local.
- E não podemos ir no barco até Cartagena de las Índias e tentar resolver o problema a partir da Colômbia?
- Nem pensar nisso, até porque o problema lá é igual ao daqui. Têm que sair e desenrascarem-se.
No check in, aquele mesmo funcionário tinha sido mais afável e não perdi a oportunidade de chamar Pilatos a quem assim se livrava de nós. Desapareceu e não foi mais visto nas redondezas daquele balcão de «apoio» aos passageiros do nosso deck.
A Graça e o Pepe – os reais organizadores das viagens que fazemos em conjunto – tinham 12 horas para conseguirem antecipar o vôo do Panamá para Cancún e para anteciparem dois dias a nossa chegada ao hotel em Playa del Carmen. Como se imagina, as comunicações do barco entupiram de imediato com tanta gente a querer resolver os respectivos problemas equivalentes ao nosso. Valeu-nos a diferença horária entre o Panamá e Portugal, 5 horas, pelo que quem tudo reorganizou com inexcedível dedicação e profissionalismo foi a nossa agência de viagens em Lisboa, a Lusanova, a quem daqui presto merecido aplauso. É que, quando desembarcámos, já sabíamos que voaríamos no vôo tal e tal, que no destino teríamos quem nos levasse ao hotel, tudo perfeito.
Formada a coluna de 16 autocarros, fomos escoltados por polícia motorizada e armada de metralhadora como se fôssemos uma leva de criminosos ou um bando de leprosos. E isto era sabendo que estávamos todos apiréticos. O que seria se alguém estivesse com febre por causa de um panarício ou por um ataque de caspa? Chegados à cerca do aeroporto, ordem para parar. E começámos a ser ultrapassados por todos os que não pertenciam à coluna. Assim estivemos cerca de uma hora até que duas dúzias dos nossos, exaltados, fizeram um cordão humano a impedir o trânsito. Foi ver a Polícia a dar ordem para seguirmos. Pensei que esses cívicos armados ou eram cobardes ou não estavam convictos de alguma ordem absurda que estavam contrariadamente a cumprir.
À hora prevista chamaram-nos para o avião. Não nos virámos para trás a fazer um gesto feio até porque os passageiros depois de nós na fila de embarque não tinham culpa nenhuma. Mas dissemos «Adios Panamá».
Vôo de duas horas e aterragem tão suave que só me apercebi que já estávamos no chão porque senti o piloto pôr o reverse e travar.
Para quem, como nós, aproveita a noite para dormir e o dia para viver, é boa a navegação nocturna em cenário de breu. Assim, depois de termos tido um problema com a âncora de bombordo que, digo eu, estaria ensarilhada num cabo submarino, lá conseguimos zarpar rumo a Montego Bay, Jamaica, o país de Bob Marley.
E quem foi Bob Marley?
Vai uma ajudinha da Wikipédia para os esquecidos como eu: Robert Nesta Marley, ou seja, Bob Marley (6 de Fevereiro de 1945 — 11 de Maio de 1981), foi um cantor e compositor jamaicano, o mais conhecido músico de reggae, famoso por ter popularizado o género.
Dedicado a protestar contra problemas sociais, levou, pela música, o movimento rastafári ao mundo com as mensagens de paz, irmandade, igualdade social, preservação ambiental, libertação, resistência e amor universal. Marley transformou-se na voz do povo negro da Jamaica que então era pobre e se dizia oprimido. A África e seus problemas de miséria, guerras e colonialismo também foram tema das suas músicas, por se tratar da terra sagrada do movimento rastafári. O lema Don’t worry, be happy! faz a síntese duma parte importante da sua mensagem.
E o que é isso do movimento rastafári?
Bom, para além das dicas que já dei, continuemos com a Wikipédia para recordarmos que o rastafári é um movimento judaico-cristão surgido na Jamaica, nos anos 30, entre negros camponeses descendentes de escravos. O movimento proclama Haile Selassie I (1892-1975), o último Imperador da Etiópia, como a segunda vinda do prometido Messias bíblico ou como a representação de Yahvé na Terra. De acordo com o livro etíope Kebra Negast, Haile Selassie é o herdeiro de uma dinastia real cujas origens remeteriam ao Rei Salomão de Israel, filho do Rei David e à Rainha de Sabá, o que é requisito bíblico para o status de Messias. Adoptado por muitos grupos ao redor do globo, o rastafári combina o cristianismo protestante, o misticismo e uma consciência política pan-africana. Os membros do movimento são os rastas.
Posto o que – e agora já sou eu de novo a botar faladura – não se pode compreender a Jamaica sem se saber o que acabamos de recordar. Até porque falar da Jamaica é o mesmo que falar de Bob Marley e falar deste é falar do movimento rastafári. E, de facto, em quase todos os locais públicos por onde passámos em Montego Bay, havia sempre um som que vinha de algures com um toque reggae, havia sempre alguém com um gesto a insinuar esse estilo. A mim, essa gente pareceu-me happy and not worried at all; outros há que dizem que é «tudo malta ganzada». Continuo na minha, actualmente, esta gente é feliz.
Extrovertidos como são, não estou a imaginar os jamaicanos metidos em clausura quando o corona vírus lá chegar. Mais facilmente morrerão a dançar.
Desembarcados, demos uma volta de autocarro por não sei onde (a minha fotofobia a pregar-me partidas) e rumámos a uma praia situada junto do aeroporto pelo que me lembrei do Gilbert Bécaud e «les avions sur l’aéroport…». E foi um caldinho de aviões a rugir nas nossas costas e o reggae a sair dos ubíquos altifalantes. Demos uns quantos mergulhos, estendemo-nos ao Sol e hoje, sim, como muito bem me corrigiu D. Pepe Gener em comentário à crónica anterior, almoçámos debaixo de um baniani imponente. Curiosas, estas árvores que crescem a poucos metros da água salgada. São como os caimões.
Comida feita, companhia desfeita, metemo-nos nos autocarros até ao barco e zarpámos rumo de regresso a Colón, Panamá.
Quando acordámos, estávamos ancorados ao largo da Grande Caimão.
E vá de saber coisas…
Porquê ao largo e não acostados? Porque, como dizem os geólogos, geógrafos e outros sábios, as três ilhas Caimão – a grande, a média e a pequena – são os picos truncados de uma cordilheira submersa e não há um mínimo de plataforma costeira que permita a construção de cais acostáveis por navios de tonelagem séria, o declive submerso é a pique. Eis por que nós e mais dois ou três navios de cruzeiro ficámos ao largo assim como uns quantos yachts de bem menor peso que o nosso. Seríamos trasfegados para terra em barcos com capacidade para 250 passageiros e não em pirogas como (não) seria expectável.
E iríamos ver caimões? Não, os caimões (crocodilos de água salgada) eram abundantes nestas três ilhas mas os ingleses que viviam na Jamaica começaram a vir aqui fazer caçadas desportivas e acabaram com eles. E, realmente, como é que se haveria de fazer um paraíso fiscal no meio dos crocodilos?
Assim foi que chagámos a terra, nos meteram em pequenos autocarros (uma vintena de passageiros) e fomos dar uma volta pela cidade, George Town, antes de irmos à praia dar um mergulho e almoçar.
Tudo plano, os edifícios mais altos que vi deveriam ter, no máximo, três pisos – rés do chão, 1º e 2º - o que não obsta a albergarem cerca de 250 bancos. Sim, como é do domínio público, quem, por esse mundo além, não gosta de pagar impostos (e há-os muitos), leva para ali as suas poupanças. É que nas Caimão não gostam de cobrar impostos, pura e simplesmente não existem publicanos. E à pergunta sobre do que vive o Estado, a resposta foi curiosa: para já, o Estado (entidade pública que administra um território e exerce a soberania) é o britânico, o do Reino Unido, pois as Caimão são um território ultramarino britânico (eufemismo para «colónia inglesa»); de seguida, o território não tem Forças Armadas – parece que tem meia dúzia de polícias, alguns barcos de vigilância costeira e dois ou três helicópteros para acudirem a acidentes marítimos – e mais do que isto, têm uma Administração Pública muito ligeira encimada por um pequeno Governo, um mini-Parlamento e um Governador (fantoche que representa a Rainha Isabel II). Tudo, financiado pelas taxas cobradas aos forasteiros residentes dos quais sobressaem os contabilistas (por que será?) como autorizações de trabalho - de duração relativamente curta, como não poderia deixar de ser para que as respectivas renovações financiem os polícias.
Infelizmente, ao longo das ruas não tropeçámos em nenhuns montões de dinheiro assim como não corremos o risco de nos cruzarmos com um caimão. Também não vimos nenhum capitalista gordo a fumar charuto, de chapéu alto, calças riscadas, colete, corrente de ouro e fraque como os comunistas gostam de os caricaturar. É que a nossa guia e motorista era uma cubana a quem tentei sacar alguma informação sobre a situação actual no seu país. Saiu a diskette estafada do boicote americano quando é sabido que tudo isso está mais do que furado pelos próprios americanos travestidos de canadianos, mexicanos ou não sei de mais quê. Não tive paciência para lhe dizer que mudasse de diskette pois ela deveria estar com medo de ser espiada por algum amigo de Cuba. Não dei troco, a conversa morreu ali e fiquei a saber que posso continuar a ter pena dos cubanos. A ironia desta conversa está em eu ter ido ao coração do capitalismo saber notícias de um dos últimos redutos do caduco comunismo.
Lá fomos então até à praia dar um mergulho sem caimões mas com um olho sempre alerta na eventualidade de algum primo maior dos cações. Confirmei que a minha querida paria do Barril, em Tavira, é a melhor do mundo.
Almoçámos num daqueles restaurantes de praia e regressámos ao barco. Ficou visto. Julgo que posso dizer «adieu».
Era ali pelas bandas do tempo que antecedeu o 25 de Abril de 1974 que a RTP transmitia o anúncio a um shampoo qualquer em que aparecia uma pequena mais ou menos coberta (ou mais ou menos despida) por uma túnica branca, metida até aos joelhos na água de um laguinho, tendo como fundo da imagem uma pequena cascata. E enquanto a pequena mexia e remexia na sua farta cabeleira, a voz-off dizia que «a Natália foi à Jamaica lavar o cabelo com…» (e dizia o nome do shampoo que já esqueci). Ora, naquela época, a filha solteira do então Presidente da República, Almirante Américo Thomaz, chamava-se Natália e, vai daí, o bom povo português encheu o anedotário nacional duma quantidade enorme de chistes a que a minha memória deu entretanto o mesmo tratamento que ao nome do shampoo.
Eis o que até há bem pouco tempo, eu sabia da Jamaica. Mas agora, indo lá, pareceu-me de alguma conveniência passar pelo Google[i] e estudar um pouco sobre o dito país.
Então, a Jamaica compõe-se de uma única Nação negra, Estado independente mas integrado na Commonwealth. O território é a ilha do mesmo nome. A actividade económica baseia-se na exploração de bauxite e no turismo enquanto o equilíbrio financeiro é muito ajudado pelas remessas dos emigrantes.
Assim sendo e nesta conformidade de viajantes, aportámos durante a noite a Ocho Rios (e não Eight Rivers como alguém me confundiu), desembarcámos num cais florido e desembocámos numa simpática praça ajardinada onde os autocarros nos esperavam. Visto da varanda do nosso camarote, Ocho Rios fez-me lembrar o Machico e não mais. Pequena vila a que por ali se chama cidade, tem aspecto asseado e não se vê miséria nem a chusma de vendedores ambulantes (mendicidade disfarçada) que nos assediara na esplanada em que almoçáramos em Cartagena de las Índias. Encamionados, lá fomos nós rumo ao desconhecido… E qual não foi o meu espanto quando deparei com a «cascata da Natália». Trata-se de um riacho cantante dentre os mais de mil que se diz existirem na Jamaica e que, enquadrado num parque de lazer, desce até à praia onde existe um rudimento de apoio turístico. Foi então que, pela primeira vez, molhei os pés naquela região caribenha. Não avancei mar adentro porque me disseram que os tubarões também gostam de tomar banho por ali.
Gostei do que vi mas achei pouco para justificar uma viagem tão longa.
Foi então, no regresso ao barco, que comecei a pensar nas diferenças óbvias entre a Jamaica e o Haiti, outra República negra nas Caraíbas, onde impera a miséria e o desmando político. E notei para comigo e em silencia que nunca me passou pelas orelhas o som do nome de algum político jamaicano enquanto que os haitianos «Papa Doc» Duvalier e seu filho gordo e perdulário encheram as notícias urbi et orbe. E desse desmando – aparentemente justificado pelos vapores da liberdade, igualdade e fraternidade - resulta por certo a fuga das gentes que não remetem poupanças para os bancos em Port au Prince. Pelo contrário, os emigrantes jamaicanos enchem de remessas os bancos do seu país porque sabem que ali tudo é sereno.
Um slogan curioso: «Na Jamaica não há problemas, há acontecimentos e estes têm soluções». Trata-se, evidentemente de um eufemismo jocoso mas não deixa de mostrar uma faceta da bonomia geral. E a pergunta que me ocorreu foi se essa bonomia não resultará de «aquela malta andar toda ganzada». Talvez sim, talvez não. Eu não vi nada que me fizesse supor uma sociedade abandalhada. Vi-a sorridente e serena, mas não eufórica no pico da ganza nem deprimida na ressaca.
Concluindo, nesta minha primeira visita à Jamaica, vou com uma ideia positiva.
Almoçámos no barco e zarpámos rumo à Grande Caimão onde chegaríamos na manhã seguinte. Tanto quanto me apercebi, as ondas devem ter sido tão grandes como as do lago do Campo Grande em Lisboa.