curtinhas VIII....
uma decisão arrancada a forceps
v Esta discussão de fecha-não-fecha blocos de parto no Portugal profundo é exemplar a vários títulos.
v Jura o ministro que nada mais o move para lá do inalienável direito de parturientes e recém-nascidos a uma assistência médica à altura do acto delicado e difícil que é parir (e ser parido). E que maternidades com pouco movimento (o limiar algo cabalístico dos 1.500 partos/ano) não conseguem proporcionar ao respectivo corpo clínico experiência bastante em casos menos frequentes, mas de maior risco – pelo que terão de encerrar.
v Contestam aqueles que se sentem afectados por tal medida que o ministro tem um único fito: poupar no orçamento à custa da incomodidade seja de quem for. E mais dizem que as maternidades cujos blocos de parto estão ameaçados de encerramento têm tido, à evidência, uma sinistralidade bem inferior àquela que outras maternidades, pretensamente mais experientes, registam.
v O ministro veio já replicar que este último argumento não tem ponta por onde se lhe pegue – e, em boa lógica estatística, o argumento só colheria se as parturientes tirassem à sorte o local onde iriam dar à luz. Não sendo assim, o que acontece é que há determinadas maternidades para onde são encaminhados os casos em risco, ou mesmo já em desespero de causa (apelidadas, em “burocratês”, de “maternidades diferenciadas”) - e ninguém de boa fé poderá mostrar-se surpreendido pelo facto de estas registarem, entre parturientes e recém-nascidos, taxas de mortalidade relativamente mais elevadas.
v Quanto à incomodidade, digo eu: aí está um argumento que uma multidão de portugueses poderá sempre invocar, seja qual for a arquitectura escolhida para a rede nacional de apoio às parturientes.
v Vamos então à substância das razões em que o ministro alicerça a sua controvertida decisão. Não sem antes chamar à colação o facto de Portugal ter, de há vários anos a esta parte, uma das mais baixas taxas de mortalidade infantil (na mortalidade perinatal já não é assim) que o mundo conhece. Isto, diga-se em abono da verdade, com a contribuição estatisticamente significativa dos tais blocos de parto que o ministro, agora, à cautela, quer ver encerrados. Percebe-se mal o raciocínio do ministro, neste particular. E uma de duas: (i) ou o ministro tem dados convincentes que o levam a concluir que nesses tais blocos de parto, durante todos estes anos, se jogou diariamente com o perigo e só por um capricho da sorte as coisas não descambaram jamais numa série negra de tragédias – e, se os tem, guarda-os ciosamente para si; (ii) ou não tem, porque a realidade foi, é e provavelmente será outra – e, então, a razão cola mal.
v Mas, admitamos por um momento que a razão cola bem - ou seja, que tem ocorrido uma singular conjunção de acasos felizes, mas que seria insensato presumir que tanta sorte junta continuará no futuro. Que se fechem, então, esses blocos de parto, e que todas as parturientes passem a percorrer, a tempo e horas, as distâncias que, ainda hoje, só os casos de maior gravidade percorrem, quantas vezes em aflição. Faria sentido...não fosse por dois detalhes (o diabo está sempre nos detalhes): (i) os partos distribuem-se, quase simetricamente, pelos que concedem o seu vagar e por aqueles outros que não se fazem anunciar com burocrática antecedência; e (ii) algumas situações de aflição acabarão, como sempre, nas tais “maternidades diferenciadas”. O que se ganha, então? Mais parturientes a percorrerem maiores distâncias, em situação de urgência, mas não de risco. Ah! E a revelação de que o ministro, afinal, deposita uma fé cega em que os acontecimentos nunca se precipitarão durante o trajecto para a maternidade de serviço.
v Que o pessoal clínico “perde a mão” se não lidar regularmente com casos raros e de risco, refere o ministro. Curioso argumento este. Alguém, em seu perfeito juízo poderá assegurar que, por cada 1,500 partos/ano, pendularmente, com a regularidade burocrática que o ministro terá em mente (mas que também não revela), ocorrerão esses tais casos que asseguram a proficiência de obstetras e enfermeiros? E se não ocorrerem, que medidas prevê o ministro para que a “mão” deles se não perca? Deverá cada parturiente certificar-se primeiro que, quem dela vai cuidar, já teve a sua dose de casos difíceis, nos últimos meses? E deverá o pessoal clínico (e as maternidades, já agora) publicitar o número de partos difíceis com que tiveram de lidar até então, sob pena de lhes ser cassado o título da especialidade? E se, por um mero acaso (improvável, mas possível), durante um ano ou dois, nenhuma maternidade do país registar um só desses tais partos tecnicamente exemplares, vai o ministro encerrá-las todas?
v Antes de prosseguir, convém aqui recordar no que é que deram algumas medidas “tecnicamente inatacáveis” que foram tomadas num passado ainda não muito distante. No final dos anos ‘80, o IANT-Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos, após décadas de trabalho e dedicação, graças à prevenção, à detecção precoce e ao tratamento eficaz, tinha conseguido trazer para números insignificantes a incidência da tuberculose, entre nós. “Acabe-se com o que já não tem razão de ser, como este relatório bem demonstra” decidiu uma ministra de convicções fortes “Os hospitais que tratem disto, a partir de agora”. E assim se fez. Menos de dez anos decorridos, voltámos a estar na cauda da Europa Ocidental também no campeonato dos bacilos de Koch, sem que ninguém tugisse nem mugisse - e sem que ninguém fosse chamado à pedra. Grande país este!
v Voltando ao assunto que aqui me traz. As razões que o ministro repete parecem ter pouco a ver com o diagnóstico que ele faz. Na verdade, o diagnóstico aponta directamente para um problema de formação continuada, de actualização e reciclagem profissional (não específico das maternidades, diga-se en passant) que só remotamente terá algo a ver com o critério dos 1,500 partos/ano. E, concedo, também com falta de equipamentos, ou com instalações deficientes aqui ou ali. Difícil assegurar o treino profissional continuado? Talvez. Mas haverá sempre o recurso a estágios nas “maternidades diferenciadas” e à rotação do pessoal clínico pelos diversos tipos de maternidade, conforme o programa de actualização (há-os?) que ficar definido para cada profissional.
v “Rotação do pessoal clínico?” perguntarão os habituais incréus, “Com o actual Estatuto do Funcionalismo Público (EFP)?”. Sim, porque não? E se o EFP é um empecilho, porque se espera para o modificar? Ou será que, também aqui, seremos nós a criar, e a manter com desvelo, os entraves que tanto nos espartilham?
v Estamos, finalmente, a tocar no fundo da questão - naquilo que a torna exemplar.
v No fundo, no fundo, há várias “questões de Estado” neste vaudeville dos blocos de parto que a cisma de um ministro quer ver fechados. Questões, não do Governo, não da Administração Pública, não de meios - mas de fins. Refiro-me, concretamente: (i) à ocupação efectiva do território nacional como expressão da soberania; (ii) ao despovoamento do interior; (iii) ao “custo da interioridade”; e (iv) ao modo como tem sido gerida a formação inicial de médicos e enfermeiros, entre nós, de há muitos anos a esta parte.
v Se o interior está cada vez mais despovoado, se muitas vilas do hinterland estiolam à míngua de jovens, há que criar todas as condições possíveis para inverter a tendência. Há que atrair para lá pessoas, e tudo fazer para que elas lá se fixem.
v Como? A receita é simples de enunciar (mas, pelo que se vê, difícil de aviar): qualidade de vida e actividade económica. Ninguém negará, creio eu, que uma maternidade acessível e segura é peça essencial na qualidade de vida de uma qualquer família jovem. Se esta optar por viver numa grande cidade, contará com o apoio de um (se não de vários) blocos de parto de confiança à distância de minutos; mas se for viver para o interior, espera-a uma deslocação de dezenas de quilómetros para dar filhos à luz. Alguém de boa fé se surpreenderá por a pressão demográfica sobre as áreas metropolitanas não parar de crescer? Não há ministro que se preocupe com a insegurança (e com os sobrecustos sociais) que daqui decorre? E se a interioridade custa, porquê agravar esse custo com uma logística mais ou menos complicada no momento do parto?
v Naturalmente, não levo este meu argumento ao exagero de pretender uma maternidade em cada esquina, muito menos defendo o que está. Digo, sim: (i) que a rede de maternidades projecta-se claramente na esfera da soberania (logo é uma finalidade do Estado, não uma opção do Governo ou da burocracia estatal); (ii) que a expressão da soberania subordina tudo o mais, mesmo as condicionantes financeiras; (iii) que qualquer ministro, se reparar melhor, sempre poderá encontrar umas quantas despesas mais onde cortar, mas que lhe está vedado cercear a soberania; (iv) que este ministro em concreto, neste assunto em concreto, dá mostras de não ter percebido que a sua decisão se situa no plano da soberania (isto para não cometer a injustiça de dizer que o ministro mandou a soberania às urtigas); (v) que o ministro só deverá decidir com base num plano de ordenamento territorial e repovoamento do interior – para que, na sua distracção, não crie novos empecilhos às medidas que, mais cedo ou mais tarde, terão de ser tomadas neste capítulo.
v A realidade que subjaz à precipitação do ministro não é, nem a falta de dinheiro (que, todos sabemos, não abunda e é mal gasto), nem a deficiência de algumas instalações (nalguns casos será). A dura realidade é que faltam recursos humanos (obstretas e enfermeiros) para guarnecer todas as maternidades que a cobertura do território nacional, pensada com razoabilidade, não deixaria de reclamar. E faltam porque a formação académica de médicos e enfermeiros tem estado, há décadas, nas mãos de cartéis de interesses corporativos fiéis ao lema: “quantos menos formos, mais ganhamos”. Mas isso, pelos vistos, não preocupa este ministro.
v Em jeito de post-scriptum: tudo isto mostra à evidência que o actual modelo municipal (da divisão do território em municípios às competências municipais; das regras da gestão municipal ao regime fiscal) dá para aumentar estas barafundas, e para pouco mais.
Lisboa, Maio de 2006
A. Palhinha Machado