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A bem da Nação

OS EUA, O REINO UNIDO E A EUROPA

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Foi considerada inédita a tomada de posição norte-americana sobre a conduta que o Reino Unido deveria adoptar relativamente à União Europeia. A notícia produziu ondas de choque na imprensa britânica e europeia.

 

Embora o assunto possa parecer menor à primeira vista, talvez não fosse pior prestar-lhe alguma atenção. Aproximam-se decisões cruciais quanto ao futuro da União Europeia e talvez elas não se centrem exclusivamente nas condições mais ou menos favoráveis do resgate a Portugal.

 

Que alguma coisa deve estar em jogo é sugerido pela singularidade da tomada de posição norte-americana. Embora o autor da declaração tenha sido apenas um secretário adjunto do Departamento de Estado para os Assuntos Europeus, a verdade é que não é costume a Administração norte-americana produzir declarações sobre a política particular dos seus aliados europeus.

 

Mas foi isso que aconteceu com a declaração de Philip Gordon, na embaixada americana em Londres. O assunto constituiu título de primeira página dos jornais ingleses e originou em seguida notícias e comentários através da Europa. O Financial Times de Londres dedicou ao tema uma coluna editorial inteira, no espaço habitualmente ocupado por três temas. Impacto semelhante ocorreu nos outros títulos maiores da imprensa britânica.

 

Que disse basicamente Philip Gordon? Afirmou que os EUA têm "uma relação crescente com a UE como instituição, a qual tem uma voz crescente no mundo, e nós queremos ver uma voz britânica forte nessa UE. Esse é o interesse americano. Desejamos uma UE virada para fora com o Reino Unido dentro dela". Acrescentou ainda que as negociações no interior da UE frequentemente tendem a virar a União para dentro e que "os referendos frequentemente viram os países para dentro".

 

A referência dificilmente poderia ser mais clara à reclamação crescente de um referendo no Reino Unido sobre a sua relação com a União Europeia. E o timing também dificilmente poderia ser mais certeiro. O primeiro-ministro David Cameron vem anunciando desde o final do ano passado um discurso estratégico sobre a posição britânica na União Europeia. Na data em que escrevo, prevê-se que possa ter lugar a 21 ou 22 de Janeiro. O local não está ainda definido, sendo a Holanda a hipótese mais citada.

 

A posição de David Cameron não é fácil. De um lado, enfrenta uma vaga crescente de eurocepticismo no interior do seu grupo parlamentar e do seu eleitorado, bem como no país em geral. Sondagens recorrentes registam mais de 50% dos britânicos favoráveis à saída da União Europeia. As mesmas sondagens registam maiorias semelhantes a favor da permanência na União Europeia, se esta regressasse basicamente a uma área de comércio livre. Por outro lado, os países da zona euro iniciaram uma rota de crescente integração orçamental, fiscal e política que tornará inevitável a prazo a revisão dos tratados da União Europeia no sentido de maior, e não menor, integração.

 

David Cameron sabe que essa maior integração não será aceitável pelo eleitorado britânico, que já não quis aderir à moeda única europeia. Simultaneamente, se simplesmente tentar ficar de fora do processo de maior integração – à semelhança do que fez com o euro – arrisca-se a ficar definitivamente marginalizado do processo de decisão da União Europeia.

 

Um ponto que talvez deva ser acrescentado é que a dificuldade da decisão não pertence apenas ao Reino Unido. Os restantes membros da União enfrentam uma escolha de dificuldade semelhante. Desejam que a União Europeia se transforme num núcleo coeso apenas daqueles países que estão dispostos a aceitar essa coesão? Ou preferem que essa escolha de maior integração continue a ser compatível com a inclusão de países que preferem uma relação mais distendida?

 

Entre os países que desejam maior integração, a Alemanha tem dado insistentes sinais de que deseja simultaneamente a manutenção do Reino Unido na União Europeia. Sabendo, em contrapartida, que os britânicos não aceitarão maior integração, os líderes alemães enfrentam uma encruzilhada de certa forma simétrica da britânica: como manter os ingleses dentro da UE e simultaneamente reforçar a integração da zona euro?

 

Neste sentido, talvez o discurso norte-americano tenha mais do que um destinatário. Certamente foi dirigido em primeiro lugar aos britânicos. Mas não deixa de interpelar todos os outros europeus sobre a arquitectura da União Europeia. Talvez este assunto devesse merecer alguma atenção também entre nós.

 

 João Carlos Espada

 

 

O CURIOSO CASO DA ADSE E A ESPIRAL ESTATIZANTE

 


No debate, ou ausência dele, sobre a chamada "reforma", ou "refundação", do Estado social, um tema aparentemente marginal merece, contudo, reflexão. Trata-se da proposta de extinção da ADSE, o sistema de saúde aplicado aos funcionários públicos. Penso que o sistema é conhecidos de todos, mas vale a pena recordar alguns aspectos. Trata-se de uma espécie de seguro de saúde, para a qual empregado e empregador descontam mensalmente. Em contrapartida, o empregado-utente da ADSE tem um desconto significativo no preço de cada consulta ou exame médico. A parte restante será paga pela ADSE, com comparticipação do Estado, ao fornecedor dessa consulta ou desse exame.

 

Finalmente, a ADSE permite ao utente escolher o fornecedor. Este pode ser privado, devendo apenas ter um acordo com a ADSE. Ainda assim, caso não o tenha, o utente da ADSE pode usá-lo, pagando o custo integral da consulta ou do exame, e sendo depois reembolsado pela ADSE de uma parte, em regra, pequena, do que pagou.

 

Não é preciso grande esforço intelectual para compreender que este sistema tem vantagens significativas relativamente a um serviço de saúde inteiramente estatizado. Em primeiro lugar, permite ao utente a liberdade de escolher o fornecedor de serviços médicos, incluindo o médico, que deseja utilizar. Em segundo lugar, através dos co-pagamentos, responsabiliza o utente pelas escolhas que fizer. Em terceiro lugar, e pelas duas razões anteriores, cria um mercado de serviços médicos e introduz nele concorrência entre fornecedores, estatais ou privados, que concorrem entre si para captar a preferência dos utentes. Este mercado, em quarto lugar, pode criar uma pressão para baixar os custos, com vista a praticar preços mais atractivos para o utente. Em quinto lugar, e finalmente, a ADSE permite uma garantia social por parte do Estado, sem que para isso o Estado tenha de construir e sustentar serviços estatais de saúde. Neste sentido, a ADSE é um sistema mais racional e menos despesista do que o serviço estatizado de saúde, do ponto de vista do princípio constitucional de garantia do acesso universal aos serviços de saúde.

 

Em face do que fica dito, uma reflexão séria sobre a reforma do Estado no sector da saúde deveria começar por ponderar a possibilidade de estender os princípios da ADSE – escolha pelo utente e concorrência entre fornecedores - a todo o Sistema Nacional de Saúde.

 

Contudo, temos assistido exactamente ao contrário. As propostas em cima da mesa propõem a extinção da ADSE, a qual é acusada de ser cara.

 

Vale a pena investigar em que sentido pode a ADSE ser considerada cara. Sabemos que é cara no sentido de que as contribuições dos utentes não cobrem a despesa global da ADSE. Mas a ADSE não pode obviamente ser mais cara do que manter milhares de médicos, enfermeiros e outros funcionários em hospitais e centros de saúde que são quase integralmente pagos com o dinheiro dos contribuintes. É obviamente mais barata. E tem a vantagem adicional de, através da escolha, produzir uma pressão para melhorar os serviços e, potencialmente, controlar os custos.

 

Insisto, por isso, na pergunta. Em que sentido pode a ADSE ser considerada como um problema estrutural? Só há um sentido possível. Se eu considerar como adquiridos e indiscutíveis os custos actuais do sistema de saúde estatizado, então devo percepcionar a ADSE como cara. Simplesmente porque ela é um custo adicional às quantias astronómicas já gastas no serviço estatizado.

 

Se o meu objectivo for simplesmente orçamental, isto é, se for basicamente cobrir o défice já existente na despesa do Estado, então é compreensível que queira abolir a ADSE. Tal como é compreensível que queira aumentar os impostos, para arrecadar mais receita que permita cobrir uma despesa cuja estrutura permanece intocável: a estrutura da despesa do aparelho do Estado, incluindo na Saúde e na Educação (cujos problemas são idênticos aos acima descritos para a Saúde).

 

Deve agora ser observado que, se o caminho para reduzir o défice do Estado consistir no acima referido - eliminar prestações sociais em regime de concorrência e aumentar os impostos -, o resultado não intencional pode ser contrário aos objectivos pretendidos. Poderá ser uma enorme estatização da sociedade portuguesa. O que resta de serviços de saúde não estatais será severamente enfraquecido, por via da eliminação da ADSE. E o que resta de economia independente será também severamente asfixiado pela subida dos impostos - como os números do desemprego e das falências mostram de forma alarmante.

 

O Presidente da República falou, com inteira propriedade, de uma espiral recessiva em curso entre nós. A esse alerta deveria talvez ser acrescentado o de uma possível espiral estatizante. A manterem-se a enorme subida de impostos e iniciativas como a promessa de extinção da ADSE, podemos estar a assistir a uma vaga não intencional de destruição da economia independente portuguesa.

 

21/01/2013

 

 João Carlos Espada

O NOVO MITO CHINÊS

Xi Jinping, novo homem-forte da China comunista

 

As mudanças recentemente ocorridas na liderança do Partido Comunista Chinês foram devidamente acompanhadas pela imprensa ocidental. Houve comentários de todos os tipos, como é natural, embora uma tonalidade comum tenha emergido: a China será a super potência do século XXI.

Previsões são previsões, como se costuma dizer e o século XXI ainda vai no adro. A ver vamos. O que já me parece mais racionalmente susceptível de teste é o elogio rasgado do sistema político chinês e a sua defesa como alternativa à democracia pluralista ocidental. Esse é o argumento que está a surgir em diversos quadrantes, alguns totalmente inesperados.

É o caso do Financial Times de Londres que publicou com grande destaque um artigo de opinião assinado conjuntamente por um professor inglês na Universidade de Tsinghua e por um empresário de Xangai. Intitulava-se "Em defesa do método chinês de escolher líderes". O texto tem de ser lido, para se acreditar que saiu no FT, e devia ser amplamente discutido – pelos disparates que contém, pela ignorância que revela... e porque prenuncia algo que vem aí.

Os autores começam por anunciar que "o sistema político chinês sofreu profundas mudanças nas últimas três décadas, tendo chegado perto da melhor fórmula para governar um país de grandes dimensões: democracia na base, meritocracia no topo, com espaço no meio para experimentação".

A participação popular em eleições locais, argumentam os autores, tem razão de ser porque as pessoas em regra conhecem os problemas locais. Mas é problemática (sic) no plano nacional. Em primeiro lugar, porque os eleitores deviam votar pelo bem comum, mas votam tendo apenas em conta os seus interesses económicos. Em segundo lugar, eles nem sequer têm competência económica para entender esses seus interesses estreitos. Em terceiro lugar, os ricos têm mais competência para compreender os seus próprios interesses e arranjam sempre maneira de usar o sistema a seu favor. Em quarto lugar, os interesses mundiais e das gerações seguintes não são tidos em conta pelos eleitores, o que faz com que a democracia hipoteque o futuro e o bem do planeta em benefício das gerações que votam.

Como resolver estes problemas? Os autores não têm dúvidas: com um sistema meritocrático que já está em exercício na China (embora concedam, com magnanimidade, que carece ainda de alguns aperfeiçoamentos). Basicamente, trata-se de aprender com o Partido Comunista Chinês, que, "nas últimas três décadas, passou de partido revolucionário a organização meritocrática."

Eles explicam-nos o sistema. Basicamente, o partido agora recruta nas melhores universidades. Os estudantes concorrem duramente para ter as melhores notas para entrarem nessas universidades. Ao longo da sua formação, têm exigentes testes de carácter (sic) e de conhecimentos técnicos. Os melhores vão ser de novo seleccionados para entrarem no partido. E, uma vez lá dentro, voltam a ter testes de carácter e competência para serem promovidos. A conclusão é clara: "Em vez de desperdiçarem tempo e dinheiro em campanhas eleitorais, os líderes (chineses) podem procurar melhorar os seus conhecimentos e desempenho. (...) Sim, a meritocracia só pode funcionar num Estado de partido único". E, a fechar, os autores deixam o seu repto final: "A concorrência no século XXI é entre boa e má governação (e não entre democracia e autoritarismo). O regime chinês desenvolveu a fórmula certa para escolher líderes. (...) Deve melhorá-lo com base nesta fórmula, não na democracia de estilo ocidental".

Não tenho aqui espaço para dissecar este argumento. Ficam, apesar de tudo, três notas muito curtas. Em primeiro lugar, este argumento não é novo. Foi apregoado e muito apreciado nas décadas de 1920-30 pelos seguidores de Carl Schmitt, na Alemanha, e de Lenine, na Rússia. Em segundo lugar, a democracia, como explicaram Winston Churchill e Karl Popper, não garante os melhores governos. Mas garante que podemos despedir pacificamente os maus governos - coisa que o regime de partido único não consegue fazer. Em terceiro lugar, todo o argumento sobre a meritocracia funda-se num erro capital: assume que o progresso se baseia naquilo que já conhecemos, e, por isso, será susceptível de medição meritocrática. Mas o progresso, que deve ser distinguido de copiar o progresso já obtido por outros, baseia-se sempre decisivamente sobre a descoberta e exploração do desconhecido, muitas vezes contra a sabedoria colectiva dominante.

Só um sistema pluralista, descentralizado, irreverente, pode explorar o desconhecido por ensaio e erro. A autocracia chinesa descobriu isto no plano económico. Faço votos para que venha também a aprender no plano político. Até lá, se não se importam, nós ficaremos com as nossas democracias pluralistas, "o pior regime, com excepção de todos os outros", como observou Churchill.

 

 João Carlos Espada

Professor na Universidade Católica Portuguesa

 

Público 2012-11-19

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