Sobre esta operação, creio que já tudo foi dito, redito e confirmado: que se trata de dívida pública encapotada (ver: EUROSTAT) e que, para dívida pública, tem um custo efectivo desmesurado (ver: declarações do ex-Ministro Campos e Cunha). Pelas m/ contas, um excesso de spread da ordem dos 0.80%/ano - o que é dizer, um sobrecusto de € 100 milhões (aprox.), distribuído, talvez, por oito anos. Enfim, o preço que o contribuinte está a pagar para que o Governo de então (Dezembro de 2003, governo Barroso) pudesse surgir prazenteiro na fotografia desse final de ano.
Malgrado tudo isto, teve ela o mérito de lançar, pela primeira vez, uma réstea de luz sobre as profundezas da administração fiscal – e o que deixa ver não é bonito. Alumiam-nos, desde então: (i) o relatório da DGI que esteve na base das negociações entre Governo e Citigroup (o organizador da operação); (ii) o Servicing Agreement (assinado pelo Veículo de Financiamento, pelo Fisco e pela Segurança Social); (iii) os Investor’s Reports (IR) do Veículo de Financiamento, relatos semestrais do que se vai passando.
Os dois primeiros constam do Prospecto da emissão de Obrigações que financiou a operação. O relatório da DGI tinha por objecto demonstrar, perante o mercado, o desempenho da cobrança fiscal entre 1993 e 2003 (1º semestre) - mas o que revela é de tal modo surpreendente que custa a crer (pese o facto de os serviços terem demorado longos meses para o apresentar). No segundo, previa-se com grande prudência que em dez anos estariam cobrados cerca de 20% (uns € 2,290 milhões) dos créditos então entregues – e admitia-se que a operação (€ 1,663 milhões) ficasse totalmente liquidada não mais tarde que 2008. Mas são os terceiros que melhor retratam a qualidade dos créditos fiscais e o desempenho de quem tem por função cobrá-los. Publicados que estão seis destes IR, é tempo de começar a tirar conclusões.
Do que tem vindo a lume, torna-se claro que, decorridos apenas três anos (até 28/02/2007), a carteira já não é o que era. Não tanto por efeito das cobranças, como seria de esperar, mas porque muitos dos créditos inicialmente entregues foram, entretanto, devolvidos à procedência (sem que nada tenha sido revelado sobre as causas que ditaram essas devoluções), e novos créditos têm vindo reforçar os fundos que garantem o serviço da dívida. Uma vez que os IR não divulgam separadamente os dados sobre os créditos devolvidos (nº e valor) e os dados sobre os créditos que são entregues em substituição (idem), só é possível estimar, em cada período de relato, o saldo líquido (isto é: “novos menos devolvidos”; idem) – e ficarão para sempre na sombra exactamente quantos destes últimos foram, por sua vez, devolvidos também. Em resumo:
(1) Dados publicados nos IR. (2) Mínimos estimados através do sinal do saldo “novos menos devolvidos”.
Como, por regra, o grosso dos créditos devolvidos se reporta aos anos de 1993 a 2002, e uma parcela significativa das cobranças provem de créditos que não constavam da carteira inicial, os dados do quadro anterior não permitem tirar conclusões seguras sobre a qualidade dos créditos fiscais. Há que desagregá-los, separando aqueles que estavam já em mora à data da operação, daqueles outros que, nessa data, se encontravam ainda a pagamento, ounem sequer existiam.
(1) Dados publicados nos IR. (2) Mínimos estimados através do sinal do saldo “novos menos devolvidos”.
(1) Dados publicados nos IR. (2) Mínimos estimados através do sinal do saldo “novos menos devolvidos”.
Salta à vista que as coisas não têm corrido de feição para os lados do Fisco – o que não é propriamente uma boa notícia para nós, contribuintes. Mas onde teria ido o actual Governo desencantar a notícia, que fez circular tempos atrás (Outubro de 2006, IR nº 5), de que tinham sido já cobrados cerca de 65% dos créditos fiscais “titularizados”, num total de mais de € 1,000 milhões? (cont.)
vA operação de titularização dos créditos fiscais a que, nos idos de 2003, uma Ministra em desespero de causa e um Banco mais espertalhão deram vida era já exemplar por três razões: (a) deixara bem patente o grau superlativo da nossa ignorância em matéria de finança; (b) revelara o desrespeito atávico pelos contribuintes, quando um Governo aceitou, sem pestanejar e com absoluta impunidade, encargos financeiros desmesurados; (c) ia permitir, creio que pela primeira vez, a observação directa do que se passava com a cobrança dos principais impostos – a razão mais útil, sem sombra de dúvida.
vPor esses dias, a Administração Pública, com muito esforço, lá fez um apanhado do que tinha acontecido nos impostos e nas contribuições para a Segurança Social entre 1993 e 2003 – e essas estatísticas ficaram transcritas no prospecto das emissões das Obrigações que o Veículo de Titularização (Sagres, SA, do Grupo Citigroup) emitiu para financiar os fundos que adiantava ao Estado Português.
vA dificuldade com que a Administração Pública então preparou informações que qualquer um diria serem instrumentos de trabalho indispensáveis a quem tenha por função cobrar receitas, nem sequer foi o mais surpreendente. Verdadeiramente aterrador era a imagem de total descontrolo no processo tributário, da liquidação à cobrança, pelo menos desde 1993, que daí emergia – sem que ninguém, dos Governos às Oposições, passando pelo Tribunal de Contas e pelos sempre vocais sindicatos da função pública, tivesse levantado voz que se ouvisse.
vOs “Investments Reports” (sim, sim, tudo o que se refere a Sagres, SA, vem escrito só em inglês) que, por força do referido prospecto e por imposição das normas aplicáveis a quem emita valores mobiliários no mercado português, o Veículo de Titularização teria de divulgar semestralmente, iam proporcionando, um após outro, uma visão bastante aproximada da (in)eficiência da máquina fiscal no capítulo da cobrança. Da cobrança de créditos fiscais em mora, sem dúvida. Mas também daqueles acabadinhos de nascer, já que só com estes o Estado poderia saldar uma dívida que nunca deixou de o ser.
vRecentemente, alguém tomou consciência de que os “Investment Reports” não passavam despercebidos. Vai daí, o do período 01/03/06-31/08/2006, que deveria ser publicado em meados de Setembro de 2006, já não viu a luz do dia – sem que, até à data de hoje, a sempre zelosa CMVM tugisse ou mugisse.
Mas que ensurdecedor silêncio . . .
vE, com isso, ficámos todos a saber duas coisas mais: (d) que as normas do mercado de capitais cedem o passo aos interesses do Governo; (e) que o Governo se furta a prestar contas, quando as contas que tem para prestar o envergonham.
“Os Governos são os grandes fomentadores da economia paralela”, eis o que alguns propalam por aí.
Tenho a economia paralela e sua quantificação como casos de Polícia. Daí a aceitar que ela seja fomentada pelos Governos é algo que à minha primeira vista não faz sentido.
Nada sabendo acerca da componente criminosa e fazendo apenas uma grosseira definição das parcelas não dolosas, encontro-me numa situação que presumo comum à generalidade das pessoas que não se dedicam ao crime nem à investigação criminal. Daqui à sua quantificação vai um espaço que não consigo cobrir sem aplicada ajuda policial.
Dentre as actividades que saíram da economia oficial por motivos não ligados ao crime enquadro as «maquizardes», ou seja, as que tiveram que passar à clandestinidade por não conseguirem suportar as obrigações legais quer no que respeita ao enquadramento regulamentar quer sobretudo à fiscalidade.
Se para as que se baseiam nas actividades criminosas só vislumbro soluções de cariz policial, para as do segundo grupo só vejo como solução a desregulamentação e a redução da carga fiscal.
Contudo, há um grupo de actividades que não são ilegais e que estão fiscalmente referenciadas mas que pura e simplesmente não emitem facturas para além do estritamente necessário à prova de que estão activas ou à não aplicação do artigo 35º do Código das Sociedades. Não me refiro à economia simplesmente biscateira desenvolvida à sombra de baixas fraudulentas da Segurança Social e do Subsídio de Desemprego mas sim a algo de mais substancial, nomeadamente a algum trabalho independente e até de “porta aberta para a rua”. A todas estas chamo translúcidas uma vez que não são opacas (criminosas) nem transparentes (porque fiscalmente evadidas).
E porque é que essas actividades assim procedem? Porque pretendem manter-se em níveis de rendimentos oficiais tão baixos quanto a decência permita e porque os clientes não têm qualquer interesse fiscal em possuírem um documento relativo à despesa que tenham feito. E, no entanto, bastaria motivar fiscalmente a clientela para que essas actividades tivessem que passar a emitir a documentação apropriada e concomitantemente a enquadrarem-se por completo na economia oficial.
Se não se pode descontar no IRS a despesa que se faz com o “conforto” do animal de companhia, então mais vale poupar no IVA . . . Bastaria que se pudesse descontar esse tipo de despesas no IRS (e já nem sequer me refiro ao desconto integral das despesas realizadas mas a uma percentagem de 50%, p. ex.) para que os recibos passassem a existir, o IVA a ser cobrado e o volume de negócios sectorial declarado a aproximar-se da dimensão que se diz possuir.
Afinal, até parece que é verdade: são os Governos que, com estas proibições, promovem a evasão fiscal e enviam inteiros sectores de actividade para fora da economia oficial.
É com base nestas realidades que nasce a tese que diz que se todos pudermos descontar todas as despesas no IRS, as receitas públicas aumentam. E como não poderia deixar de ser, também existe a antítese que afirma que os novos descontos no IRS ultrapassariam o aumento das receitas pelo que o encaixe público seria menor.
Como será?
O actual método de cálculo da matéria colectável – tanto para efeitos de IRS como de IRC – apenas permite o desconto de algumas despesas.
Imaginemos o seguinte cenário:
Matéria tributável no IRS=100
Despesas dedutíveis(30%)=30
Matéria colectável=70
Taxa aplicável = 30%
COLECTA=21
Admitamos agora que sobre metade das despesas não dedutíveis (35), o Contribuinte, ao não pedir recibo, permite que nessas transacções o lado da oferta se evada fiscalmente. Ou seja, no nosso modelo, a evasão fiscal assume a dimensão de 35 pelo que só 65 se enquadram na economia oficial: os 30 já “agarrados” pela dedutibilidade das despesas no lado da procura mais os 35 do lado da oferta que não passaram à clandestinidade apesar de corresponderem a despesas não dedutíveis.
Nestas circunstâncias, do lado da oferta, o mesmo modelo será como segue:
Matéria tributável no IRC=65
Despesas dedutíveis(30%)=19,5
Matéria colectável=45,5
Taxa aplicável = 30%
COLECTA =13,65
COLECTA TOTAL (IRS + IRC) = 34,65
IVA,à taxa de 21% (sobre 65) =13,65
RECEITA PÚBLICA TOTAL=48,3
Imaginemos agora que o Governo fazia aprovar um novo método de cálculo do IRS permitindo o desconto de mais despesas, agora para 50% em vez dos 30% do exemplo anterior. Introduzindo apenas essa variação no modelo do lado da procura, sucederá o que segue:
Matéria tributável no IRS=100
Despesas dedutíveis(50%)=50
Matéria colectável=50
Taxa aplicável = 30%
COLECTA=15
Continuemos a admitir que sobre metade das despesas não dedutíveis (25) pela procura, o lado da oferta nessas transacções se evada fiscalmente. Assim sendo, a evasão fiscal assume a dimensão de 25 e ao universo tributável inicial (65), há agora que juntar aqueles que abandonaram a clandestinidade (25) para constituírem um novo universo tributável do lado da oferta já com a dimensão de 90 num total de 100.
Matéria tributável no IRC=90
Despesas dedutíveis(30%)=27
Matéria colectável=63
Taxa aplicável = 30%
COLECTA =18,9
COLECTA TOTAL (IRS + IRC)=33,9
IVA,à taxa de 21% (sobre 90)=18,9
RECEITA PÚBLICA TOTAL =52,8
E assim sucessivamente até à exaustão da economia translúcida para o que bastará os Governos, à semelhança do que parece suceder nos EUA, permitirem que a procura – apenas os singulares para efeitos de simplificação do modelo – deduzam todas as despesas na declaração anual de rendimentos para efeitos de cálculo da matéria colectável.
Neste exemplo apenas permiti que os singulares deduzissem mais despesas aos seus rendimentos declarados e nada fiz quanto aos colectivos. Se procedermos de igual modo quanto a estes, poderemos trazer de volta à economia oficial as tais empresas «macquizardes» que não suportam a actual carga fiscal e se se voltar a legalizar a prostituição – com o inerente controlo sanitário que “in illo temporae” em Lisboa funcionava onde hoje se localizam as mais novas instalações do ISEG – poderá essa actual componente criminal passar do campo opaco para o translúcido e o Fisco a obter alguma receita a partir duma fonte que actualmente lhe está totalmente vedada. Mas restam as maiores dúvidas sobre se o Fisco tem vontade de ir ao lupanar . . .
A operação de “titularização” de créditos fiscais revisitada
Pelo que ficou escrito nos artigos anteriores, esta operação é demasiado semelhante a dívida pública, e demasiado corriqueira, para justificar prémios e sobrecustos – e, não obstante, eles aí estão.
Mas como é que o Governo pensava pagar tudo isto? Com o produto da cobrança dos créditos que estava a entregar, naturalmente. E chegaria? Que sim, segundo o Servicing Agreement (documento assinado por Sagres, SA, Fisco e Segurança Social, não divulgado na íntegra e que vem resumido no Prospecto, embora cuidadosamente despojado de dados). Aí se admitia, com louvável prudência, que, em dez anos, cobrar-se-ia cerca de 20% dos créditos entregues (€ 2.29 mil milhões), podendo a operação ficar totalmente liquidada até 2008. Estes primeiros quatro semestres e meio (até 28/02/2006), hélàs! contam-nos uma outra história.
Desde logo, revelam que o Estado tem vindo a entregar créditos que não estavam vencidos (se é que estavam constituídos) na data-limite adoptada para a operação inicial (30/09/2003). Apesar de os Relatórios semestrais serem omissos quanto a isto, é possível adiantar algumas estimativas sobre o que se tem passado com estes créditos mais recentes: dos 226 mil créditos entregues (no valor de € 1.8 mil milhões), 19 mil (no valor de € 591 milhões) voltaram à procedência e 119 mil (no valor de € 135 milhões) foram cobrados. Nestes dois primeiros anos, e neste lote de créditos, a eficiência de cobrança terá sido de 53% em número, mas só de 7% em valor. O rácio de exclusão, esse, terá atingido 8% em número e cerca de 1/3 em valor. Ora, o aparecimento destes créditos não dá lugar a dúvidas: estão a ser mobilizadas receitas que pertencem a exercícios orçamentais mais recentes para liquidar um compromisso que aproveitou, directa e exclusivamente, ao exercício de 2003. Se isto não descreve uma dívida que está a ser paga - como descrevê-la, então?
Quanto aos créditos que integravam a carteira inicial (ela própria constituída por 1.5 milhões de créditos no valor de € 11.4 mil milhões; mas nunca se soube quantos eram os contribuintes envolvidos, pelo que a concentração do risco continua uma incógnita), teriam sido devolvidos 914 mil (no valor de € 5.4 mil milhões), recebidos em substituição 128 mil (no valor de € 728 milhões) e cobrados 262 mil (no valor de € 496 milhões). A eficiência de cobrança, neste período, foi de 17% em número e de 4% em valor - muito longe, pois, do que inicialmente se admitira (o realizado não foi além de 22% do previsto). Mas o que mais surpreende é o nível que o rácio de exclusão terá atingido: 59% em número e 47% em valor. Porquê? É a pergunta que se impõe. Será que o Estado não consegue demonstrar os créditos que reclama (talvez, efeito colateral daquela prática que consiste em fixar anualmente, com burocrática presciência, objectivos de liquidação por Repartição de Finanças)? Ou será que do critério de exclusão também consta a acrescida dificuldade de cobrança (que o Prospecto não captou), o que tornaria o Estado, objectivamente, fiador dos contribuintes cedidos? Ou ambas, à vez?
Não cabe fazer aqui uma análise por imposto e contribuição do que se está a passar, mas essa análise é inegavelmente útil à administração fiscal. Quando decorriam os preparativos para esta operação, Fisco e Segurança Social, depois de alguma demora, lá facultaram estatísticas sobre a eficiência das suas cobranças no passado (que o Prospecto, aliás, transcreve). E é essa a face mais trágica desta operação. Dez anos não são suficientes para cobrar o IRS liquidado num qualquer ano - 28% ficam por cobrar. Pior no IRC, onde 68% dos valores liquidados num ano estão destinados a prescrever. E no IVA, em que extinguem-se incobrados cerca de 60%. Ou na Segurança Social, que só consegue receber 26% das suas receitas. Sabendo-se que, em teoria, todos os impostos e contribuições deveriam estar praticamente pagos entre o ano a que respeitam e os dois anos imediatamente seguintes (salvo os atritos usuais num processo de cobrança), as referidas estatísticas dão-nos o seguinte quadro das percentagens cobradas, em média, nesse lapso de tempo: IRS, 21%; IRC, 14%; IVA, 18%; e Segurança Social, 13%.
Perante isto, como não perguntar: Acredita-se ainda que a operação pode ser liquidada com os créditos inicialmente entregues? Existe alguma verdade nos processos de liquidação fiscal em vigor? Ninguém, alguma vez, esteve interessado em conhecer, mês após mês, os resultados mensais do esforço de cobrança e o porquê dos desvios? Alguém se apercebeu de que os dados da execução orçamental comparam o incomparável (as receitas orçamentadas para esse ano versus as cobranças de créditos que vêm do antecedente)? Não percebem os Ministros das Finanças, e os candidatos ao lugar, que pôr a casa em ordem, antes de se entreterem com a macroeconomia, é uma responsabilidade que só a eles pertence e que é para isso que são pagos? Enfim, que juízo fazer desta operação e dos seus interpretes?
A operação de “titularização” de créditos fiscais revisitada
Se os primeiros passos desta operação foram, no mínimo, confusos, o seu teor também não prima pela clareza. Tenhamos presente que o interesse de titularizar créditos (mas créditos com vencimento futuro, não já vencidos, como estes agora) reside no facto de financiamentos assim não envolverem endividamento adicional (diminui, sim, o activo de quem se financia). Para que assim seja, o originador (aqui, o Estado) não poderá ficar por fiador daqueles que têm a obrigação de pagar os créditos entregues, nem poderá assumir perante o “veículo de titularização” (e/ou os portadores das obrigações que este emitir) o compromisso de recomprar, mais tarde, os créditos que acaba de ceder. Caso contrário, tratar-se-á de um verdadeiro empréstimo, em que os créditos entregues servem, ou como de forma de pagamento (pro soluto), ou como garantia (pro solvendo).
Obviamente, se os créditos que são objecto de titularização não existirem (ou se, existindo, nunca puderem ser exigidos), a cessão é nula; o preço recebido terá de ser restituído; e, talvez, a conduta do originador deva ser apreciada em juízo. A excepção que aproveita ao Estado visava isto mesmo: não, libertá-lo da obrigação de restituir o preço que receba por algo que nunca poderia alienar; sim, poupá-lo à acusação de ter promovido um negócio nulo. Pelos vistos, o Governo - receoso de que alguns dos créditos que se preparava para entregar, ou não fossem exigíveis, ou não existissem – quis afastar, desde logo, por via legislativa, os incómodos que daí lhe poderiam advir. Mas não se percebe porquê.
Na realidade, o que o Prospecto refere são entregas pro soluto (isto é, entregas destinadas a pagar dívidas que ficam, por esse facto, liquidadas), o que pressupõe uma anterior dívida do Estado a Sagres, SA (o “veículo de titularização”). Porque nefas? Se os créditos fiscais tivessem sido efectivamente vendidos (isto é, cedidos) falar-se-ia, sim, da dívida que Sagres estava a contrair perante o Estado (e não o contrário), do preço da cessão, e de como este preço teria de ser pago - nunca de entregas pro soluto. Pelos vistos, o modo como Sagres contabiliza esta operação sempre tem algum fundamento.
E não haverá outras mais responsabilidades assumidas em nome do Estado, designadamente, quanto à boa cobrança dos créditos envolvidos na operação? Também neste ponto o Prospecto é pouco esclarecedor. É certo que nele se lê que o Estado não responde, nem pelos contribuintes, nem pelas promissórias com que Sagres financia a operação. Mas não enumera exaustivamente os factores que, a verificarem-se num qualquer crédito, o excluem da operação. Em contrapartida, dá a saber que o Estado se obrigou a substituir prontamente os créditos que Sagres viesse a excluir, ou a recomprá-los, ou a restituir o que por eles recebera. Há que ver como a prática interpreta este critério de exclusão (referido, mal, como “a questão dos incobráveis”). Com a certeza, porém, de que nenhuma informação foi, até à data, divulgada sobre o número e valor, já dos créditos excluídos (isto é, restituídos ao originador), que têm sido muitos; já dos créditos entregues em substituição, que não têm sido menos; já dos créditos recomprados e das indemnizações pagas, sobre o que também nada se sabe.
Intervêm nesta operação: agentes cobradores (Fisco e Segurança Social, que se fazem pagar pelo serviço prestado); alguém que cobre o risco a que Sagres se expôs ao emitir dívida com taxa variável; outro que, se necessário, adiantará liquidez para que juros e reembolsos possam ser pagos pontualmente; e uns tantos mais, a propósito deste ou daquele aspecto operacional. Enfim, o habitual em tais ocasiões. Aliás, as comissões a cargo de Sagres também não são por aí além, embora falte apurar ainda os encargos que o Estado tenha pago, ou esteja a pagar, directamente.
A parcela maior do custo efectivo dos fundos que Sagres colocou à disposição do Estado corresponde, porém, aos juros contados nas promissórias – juros esses que reduzem o encaixe definitivo que o Estado terá a haver. Ora, ponderados os montantes das diversas séries e os respectivos prazos, o spread médio é de +0.70%. É muito? É pouco? Não existe nenhum instrumento de dívida pública que possa servir de comparação, já que esta operação reúne características nada usuais: taxa variável (excepto na série T), reembolsos variáveis (e não de uma só vez, no termo do prazo), capitalização de juros (na série T) e estruturação (as séries M, N, O só podem começar a ser reembolsadas depois de a série A1 ter sido integralmente paga). O que poderá haver de mais semelhante, em termos de spreads, são as emissões de Bilhetes de Tesouro com prazo igual ao do indexante (6 meses), cujas taxas efectivas, por norma, são inferiores às deste em –0.07%/-0.12%. Feitas as contas, o sobrecusto desta operação (€ 13 milhões/ano) é o preço que os contribuintes vão pagar durante anos para que o Governo de então pudesse proclamar, satisfeito: missão cumprida!
A operação de “titularização” de créditos fiscais revisitada
Em 19/12/2003, Sagres, SA (uma sociedade de direito português que o Citigroup criara meses antes) entregava no Terreiro do Paço € 1,760 milhões, o preço provisório (líquido das comissões à cabeça) convencionado no âmbito de uma operação dita de titularização de créditos fiscais vencidos. Mesmo a tempo de salvar o deficit público desse ano.
Foi só em 21/03/2005 que Sagres deu a conhecer as suas contas de 2003, mas em conjunto com as de 2004 (o que, convenhamos, está longe de proporcionar uma visão clara dos factos). Designada de Explorer, lá aparece esta operação: o empréstimo obrigacionista no passivo a longo prazo, como seria de esperar; a contrapartida classificada no imobilizado, como investimento financeiro, e não no activo circulante (onde, por esse mundo fora, é costume contabilizar os créditos vencidos, logo, imediatamente exigíveis). Dos créditos entregues pelo Fisco e pela Segurança Social (os tais que totalizavam € 11,441.4 milhões) é que nem traço. Coisa estranha esta de Sagres considerar que possui um crédito de longo prazo sobre alguém (sem explicar em nota quem seja) e dar a esse crédito exactamente valor igual ao da quantia que acabava de desembolsar. Mas a estranheza dissipa-se quando nos lembramos que as contas de Sagres são consolidadas no Citigroup, que este está sujeito à supervisão da SEC, nos EUA, e não consta que a SEC seja de facilitar. Para valer do outro lado do Atlântico, nada de titularização de créditos vencidos - antes um empréstimo puro e duro. Por cá, ia-se insistindo na versão oficial.
Mas as maiores surpresas reserva-as o Prospecto: desde logo, porque ele vem datado de 15/04/2004, não havendo vestígio do registo de nenhum outro anterior; depois, porque refere uma emissão de seis séries de promissórias com o valor facial total de € 1,663 milhões a ter lugar daí a cinco dias. Estaremos a falar do mesmo? Não, não estamos. Este Prospecto diz respeita à emissão das promissórias que hoje circulam por aí. E tudo indica que, inicialmente, ou não foram emitidas nenhumas obrigações (embora o Balanço de Sagres, no fecho de 2003, refira um empréstimo obrigacionista), ou foram, mas sem se fazerem acompanhar do Prospecto que a lei exige.
O que terá acontecido, então, entre o fecho de 2003 e Abril de 2004? Nada de mais: a emissão anterior foi liquidada antecipadamente (e poderia ser? como saber, se não há prospecto?) com o encaixe da nova emissão, à qual, para complicar, foi dada a mesma designação. Mas, e os € 102 milhões de diferença (para não falar já nos custos de emissão em duplicado), de onde saíram eles? Poderiam corresponder a cobranças entretanto efectuadas? Impossível saber – por duas razões principais: o primeiro Relatório semestral que Sagres deu à estampa abrange o período entre 01/10/2003 (!) e 31/08/2004, em bloco, sem qualquer detalhe temporal; nem deste, nem dos Relatórios seguintes constam dados que são indispensáveis ao acompanhamento da operação (como sejam: que créditos Sagres devolve, classificados por causa de devolução; e que créditos recebe ela em substituição).
Conhecem-se as cobranças naqueles primeiros onze meses: € 212.8 milhões (aprox.). Não sendo crível que os contribuintes em falta, num rebate de consciência, tenham acorrido a pagar as suas dívidas nos últimos dias do ano, nem tendo havido mudança nos agentes cobradores (o Fisco e a Segurança Social, como até aí), forçoso é concluir que em menos de quatro meses se teria cobrado sensivelmente o mesmo que nos sete meses seguintes. Só que em mais nenhum outro período semestral se voltaria a cobrar tanto.
Podemos não saber como tudo se passou, mas não podemos ignorar o que tudo isto indicia: a não ser que circulem por aí informações confidenciais (o que representaria grave discriminação contra os obrigacionistas), os dados divulgados não permitem, de todo, que ninguém controle satisfatoriamente a operação; aparentemente, ainda a operação não estava fechada e já o Governo lhe afectava cobranças, não se percebendo muito bem se essas cobranças terão valido a dobrar (para efeitos da operação e para efeitos da execução orçamental); parece que os € 1,765 milhões foram só para UE ver – apurado o deficit, prevaleceu o montante que interessava ao financiador; se os € 102 milhões não saíram da cobrança dos créditos inicialmente afectados à operação (e é legítimo duvidar, até evidência em contrário), o Governo teve de lançar mão de receitas fiscais mais recentes para reembolsar parte do que lhe tinha sido adiantado (mas não caracteriza isto uma verdadeira dívida?); fica a ideia de que, pelo menos para o arranque da operação, o Governo escolheu créditos que sabia serem facilmente cobráveis, em prejuízo da sua própria tesouraria. Enfim, fosse outra a entidade envolvida, que não um Governo, e dir-se-ia que este era um caso flagrante de window dressing.