CURTINHAS CXII
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v Ter o “resto do mundo” como parceiro (era IV) muda radicalmente a estrutura da economia. Vejamos porquê.
v Se as pessoas puderem passar livremente de um lado para o outro da linha (a fronteira), a evolução demográfica (população total, emprego potencial e grau de dependência social, referências da era I) será mais difícil de prever, mesmo a curto prazo. E esta imprevisibilidade transmite-se:
(i) à procura interna;
(ii) à actividade das Empresas;
(iii) a ambos os lados do orçamento do Governo (era II).
v Se prevalecer a livre movimentação transfronteiriça de mercadorias e serviços:
(i) as preferencias individuais ampliam-se e diversificam-se, estimuladas por aquilo que o “resto do mundo” tem para oferecer;
(ii) onde havia um único tipo de Empresas (incluindo o Governo, provedor de bens públicos), há agora os quatro tipos de Empresas que indiquei em “Curtinhas CVIII”.
v Mesmo com restrições à importação e exportação de capitais, poucos são os Governos que resistem à tentação de se endividarem junto do “resto do mundo”. Mas, sem tais restrições, é pelos Balanços dos Operadores Financeiros (nomeadamente, dos Bancos) que transitará o grosso dos fluxos financeiros que cruzam a linha – e a imprevisibilidade estende-se ao volume da liquidez em circulação (era III).
v É frequente confundir-se (confusão que tem raízes fundas na vulgata económica) liquidez com unidade de conta (a moeda: €, USD, GBP, etc.). A liquidez, sendo uma quantidade, vem expressa necessariamente numa unidade de medida (no caso, unidade de conta). Mas a liquidez nada mais é que o total de certos e determinados passivos dos Bancos (Banco Central e Bancos Comerciais, como na era III). E ainda que esses passivos se denominem numa mesma moeda, eles não estão todos em pé de igualdade: são os esquemas de garantia dos depósitos que acabam por os tornar indistinguíveis.
v Esta circunstância ganha outro relevo na presença do “resto do mundo”. Estará o “resto do mundo” na disposição de aceitar em pagamento, e deter como liquidez internacional, os passivos dos Bancos do lado de cá da linha? Se este lado for os EUA, está. Se for a Zona Euro, talvez esteja, dependendo da solidez e da projecção internacional dos Bancos em causa. Mas, em geral, não está.
v E, se não estiver, os bens e serviços que o “resto do mundo” tem para oferecer só estarão ao nosso alcance se dispusermos de liquidez internacional. E esta só vem até nós:
(i) através das empresas exportadoras;
(ii) como acréscimo do endividamento externo do Governo (Dívida Pública Externa), dos Operadores Financeiros (Dívida Monetária Externa) e de Empresas (Outra Dívida Externa que, no nosso caso, tem fraca expressão); e
(iii) sob a forma de investimento do estrangeiro (directo e “de carteira”);
(iv) por via de transferências unilaterais (remessas de emigrantes e verbas comunitárias, por exemplo).
v O que isto significa é simples: a economia como um todo está sujeita, também ela, a uma restrição nominal (restrição externa) definida em termos de liquidez internacional. Esta restrição externa existe e condiciona-nos mesmo hoje, que estamos integrados na Zona Euro. Para ela contam, unicamente, os passivos bancários que o “resto do mundo” aceite em pagamento (o ouro em barra deixou de contar, oficialmente, como liquidez internacional há anos já).
v Infelizmente, o “resto do mundo” não considera que os passivos dos Bancos do lado de cá da linha sejam bons para pagamento – o que é dizer, os “Euros de cá” não servem como liquidez internacional. Por isso, a restrição externa tem para nós uma importância primordial. Aliás, sempre teve. Grande parte da nossa História recente é escrita pelas vicissitudes da restrição externa: do modelo económico do Estado Novo até ao modo canhestro como abordámos a adesão à CEE.
v [Já estou a ouvir a pergunta: Então se o “resto do mundo” não reconhece os “Euros de cá” como liquidez, porque diabo deveremos nós aceitá-los? Primeiro, porque, para extinguir dívidas fiscais, só “Euros de cá” (sim, o Governo/Fisco é esse diabo). Depois, porque converter “Euros de lá” em “Euros de cá” tem custos de transacção que podem chegar a ser pesados. Mesmo assim, há sempre quem queira deter “Euros de lá” (ou outra qualquer divisa convertível, que não o €), provavelmente, em Centros Financeiros Offshore].
v Em resumo: “resto do mundo” é sinónimo de mais actividades, mais oportunidades de escolha, mas também mais incertezas – logo, mais risco. E induz uma nova restrição nominal (a restrição externa) que afecta a economia como um todo, apesar de só ser visível nos Balanços do Banco Central e dos Bancos Comerciais (também será visível nos Balanços de alguns outros Operadores Financeiros, se as Bolsas, os Mercados de “Futuros” e de “Outros Derivados” forem importantes ao nível “macro”).
v O diagrama que desenhei em“Curtinhas CVIII”, com mais coisa, menos coisa:
(i) descreve, a traço grosso, qualquer economia, num dado momento;
(ii) facilita as comparações entre economias;
(iii) desenha a evolução de uma dada economia ao longo do tempo. Basta indicar:
- A escala da economia (dimensão da população e nível de actividade, ou PIB);
- O grau de dependência social (a relação entre Famílias Activas com emprego e restantes Famílias);
- A distribuição do emprego pelos quatro tipos de Empresas (onde se inclui o Governo, recordo; em geral, os Operadores Financeiros pesam pouco no emprego);
- O saldo da BTC (bens, serviços, rendimentos e transferências unilaterais);
- A variação de cada uma das componentes da Dívida Externa (Dívida Pública Externa, Dívida Monetária Externa e Outra Dívida Externa) – estreitamente relacionadas com o saldo da BTC, porque, para comprar/importar, a liquidez internacional de algum lado terá de vir (ainda que o saldo da BTC acompanhe de perto a variação da Dívida Externa Total, raramente coincidem: a diferença está no saldo entre o investimento no estrangeiro e o investimento do estrangeiro);
- A projecção da restrição externa no futuro (que deixa entrever em que sentido variará a Dívida Externa, nesse horizonte de tempo; e é aqui que entra o stock de Reservas Cambiais);
- A posição líquida dos Bancos Comerciais perante o Banco Central, ou seja, o total dos depósitos que mantêm junto do Banco Central
- A Base Monetária do sistema bancário – deduzido da liquidez primária que o Banco Central lhes tenha cedido e ainda esteja por reembolsar;
- A posição dos Bancos Comerciais nos mercados monetários internacionais (se credora, se devedora);
- O volume dos empréstimos bancários e a sua distribuição pelos diversos actores, incluindo o “resto do mundo” (o que as Demonstrações Financeiras dos Bancos Comerciais dão, ou devem dar, a conhecer);
- A robustez do sistema de pagamentos, medida pela capacidade de os Capitais Próprios dos Bancos Comerciais absorverem perdas, tanto as inevitáveis, como as evitáveis.
v E o saldo da execução orçamental do Governo? Tanta discussão à volta do tema – e fica de fora? Fica sim, Leitor, e não é por esquecimento. É por ser, à vez:
(i) enganador;
(ii) redundante;
(iii) em larga medida, pré-determinado.
E não tem porquê afectar directamente a restrição externa.
v É enganador porque sendo um saldo contabilístico pode ser manipulado com “contabilidade criativa” (disciplina que todos os nossos Ministros das Finanças, nestas três últimas décadas, passaram com distinção e louvor). Eliminadas as “habilidades contabilísticas”, restam as necessidades de financiamento reflectidas na variação da Dívida Pública Total. Por isso é redundante.
v Existe, é certo, alguma margem para o arbítrio político na intermediação fiscal que tem por finalidade transferir rendimentos das Empresas e das Famílias Activas com emprego para as restantes Famílias (era II). Mas a realidade demográfica e o grau de dependência social acabam sempre por se impor.
v Enfim, não é forçoso que o Governo se endivide junto do “resto do mundo” para financiar o exercício orçamental. E fazê-lo é, mesmo, prova de fraco tino: a Dívida Pública Interna (voluntária ou “patriótica”) não serve para outra coisa. Ora, a Dívida Pública Interna é, apenas, uma questão doméstica entre gerações, que deixa intacta a liquidez em circulação, tanto quando é contraída, como quando paga juros ou é reembolsada.
v E a preocupação com os Custos Unitários do Trabalho (CUT), essa, fica para mais tarde.
(cont.)
A. Palhinha Machado
Julho de 2013