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A bem da Nação

CRÓNICA DE LISBOA – 2

O Doutor Lima era professor de português no Liceu que frequentei em Lisboa mas como também dava aulas no Colégio Militar, tinha o posto de Capitão. Para nós, adolescentes, ele era muito mais Capitão que Doutor e todos o temíamos mais do que o respeitávamos. Na primeira aula que tivemos com ele, no então quinto ano, avançou sem rodeios para “Os Lusíadas” e mandou que um dos meus colegas lesse a primeira estrofe. Timidamente, o Gonçalo leu: “As armas e os barões assinalados que da ocidental praia lusitana por mares nunca dantes navegados passaram ainda além da Taprobana em perigos e guerras esforçados mais do que permitia a força humana . . . “, tudo de uma ponta à outra sem hesitações nem pausas como se a pontuação lá não estivesse. E assim foi que o Doutor Lima nos lançou a esse mar para nós até então desconhecido que se chama divisão de orações e análise de conteúdos. Não tínhamos percebido nada do que acabara de ser lido em voz alta e desconhecíamos totalmente o que era essa tal coisa de Taprobana. Começámos a achar alguma graça quando o Doutor Lima explicou que a Taprobana era a ilha de Ceilão a que hoje chamamos Sri Lanka e que as armas e os barões eram as insígnias dos militares que se tinham lançado nessas aventuras por mares desconhecidos. E cada vez que saltávamos um par de vírgulas, percebíamos a frase com muito maior limpidez e, afinal, nós os adolescentes, convencidos de que o mundo era nosso, tivemos que concluir ali de repente que muito antes de nós tinha havido quem soubesse coisas que a nós ainda nem nos passavam pela cabeça. Creio que todos fizemos em silêncio um acto de contrição por tanta falta de humildade e, passados mais de quarenta anos, ainda recordo o espanto com que os versos de Camões nos iam aparecendo com uma transparência evidente surgindo de um emaranhado de orações poeticamente urdidas de modo a que um adolescente não os pudesse decifrar. Para mim, a glória de Camões está sobretudo na forma clara como ele escreveu e como, depois, embrulhou tudo arranjando emprego por esses séculos fora a tantos professores que ainda hoje se dedicam a explicar a evidência do conteúdo de “Os Lusíadas”. Ainda hoje ouço muita gente blasfemar contra a divisão de orações que consideram uma acção penosa e eu calo-me pensando que o azar deles foi não terem sido alunos desse tal Capitão façanhudo que era o Doutor Lima, afinal uma pessoa ilustre, de espírito fino e pensamento claro. REFLEXÃO O espírito é invisível; Um anjo é invisível; O vento é invisível; O pensamento é invisível. No entanto, pode-se sentir o vento E, com delicadeza, Podemos sentir o espírito, Podemos adivinhar o anjo E até, com alguns pensamentos, Podemos mudar o mundo. Esta poesia não é certamente de Camões e chega-me do Brasil por Internet sem indicação do autor. Transcrevo-a, portanto, sem pedido de autorização pois creio que ela nos dá uma lógica para não termos medo de um Capitão sem primeiro averiguarmos se lá dentro não está um Doutor. Lisboa, Janeiro de 2004 Publicado em Pangim no "Lusofonia- Goa", Março de 2004

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